Editorial
Marxismo e
Autogestão
Marxismo e autogestão é algo que pode parecer muito pouco
inteligível para todos que foram socializados, ressocializados, influenciados,
inspirados, pelo chamado “marxismo”-leninismo ou então para aqueles que,
contrariamente, foram doutrinados para combater e negar tudo que tenha a ver
com Marx, Lênin, comunismo, entre outros termos, criando uma confusão entre marxismo
e leninismo, como se fossem uma única e mesma coisa. Sem dúvida, Marx e Lênin
são dois nomes que expressam uma divisão: a divisão entre duas perspectivas de
classe distintas, que, portanto, revelam valores, concepções, representações,
sentimentos, também distintos. A confusão, ou seja, a fusão de duas coisas
diferentes, apaga as inúmeras diferenças entre estes dois indivíduos e, mais
importante, o antagonismo de interesses e concepções que eles manifestam.
Marx é o teórico do proletariado, aquele que através do seu
humanismo revolucionário se aproximou e expressou teoricamente a luta da classe
operária revolucionária. Lênin, por sua vez, é o ideólogo da burocracia, classe
que visa buscar o poder estatal e substituir a burguesia. O proletariado luta
pela abolição do capitalismo e criação de uma sociedade fundada na liberdade e
igualdade, que Marx chamou “comunismo”, “livre associação dos produtores”,
“autogoverno dos produtores”. A burocracia luta para conquistar o poder estatal
e estatizar os meios de produção e substituir a burguesia privada no processo
de extrair mais-valor do proletariado e gerir o processo de acumulação em seu
benefício. Mas, desde a socialdemocracia, o pensamento de Marx foi deformado, e
Lênin se aproveitou do trabalho iniciado pelos reformistas e consolidou o
processo de criação do pseudomarxismo.
Muitos se sentem ofendidos com o termo pseudomarxismo.
Poderíamos, para não ofendê-los, deixar de dizer a verdade e fazer de conta que
eles são tão marxistas quanto Marx, Korsch, Pannekoek, e diversos outros que
morreram lutando pela igualdade e liberdade, pela revolução proletária e
emancipação humana, inclusive muitos sendo assassinados por aqueles que são os
ídolos dos outros que não querem ser chamados de pseudomarxistas. Teríamos esse
direito? Seria correto deixar de dizer a verdade para agradar pessoas que
continuam com as mesmas práticas políticas burocráticas, autoritárias, do
leninismo e semelhantes? Ora, dizia um trotskista ingênuo, nós politicamente somos
todos da mesma “família”! E acrescenta que nossas diferenças são apenas
“táticas”! Isso é tão falso quanto o “marxismo” dos pseudomarxistas. O marxismo
não é uma “família” e muito menos faz parte da família dos pseudomarxistas. O
marxismo trabalha com a questão das classes sociais e não da família e sua
diferença com o leninismo não é apenas tática, mas geral (teórica,
metodológica, estratégica, valorativa, etc.).
A questão não é diferença de tática, de concepções
superficiais, a diferença é muito mais radical, é de perspectiva, o que inclui
valores, interesses, concepções, sentimentos, etc. que são antagônicos. As
manifestações populares de 2013 no Brasil mostraram bem claramente a diferença
radical e o antagonismo: um marxista fica do lado da luta da população e os
pseudomarxistas ficam do lado dos seus partidos, procurando motivos para
criticar a população por não estar seguindo seus “líderes” e “partidos” (a
burocracia partidária, que é a essência do bolchevismo).
Não se trata de pensar que as obras de Marx sejam a verdade
revelada e nem de distinguir entre “marxismo ortodoxo” e “marxismo heterodoxo”.
Os escritos de Marx são essenciais por se manterem, em grande parte, atuais e
verdadeiros. A essência do capitalismo, magistralmente analisada por Marx em O Capital, é a mesma, apesar da mudança
formal. Logo, não é suficiente ler Marx, mas é o ponto de partida, pois o que
ele disse a respeito do capitalismo não há como negar e nem pode ser
desconsiderado, a não ser pelos caçadores de glória intelectual querendo “matar
o pai” para substituí-lo, mas estes são alguns intelectuais edipianos sem muita
coisa para oferecer. Ser marxista não é ser fiel aos escritos de Marx e sim ser
fiel ao princípio revolucionário da luta pela emancipação humana via revolução
proletária. Sem dúvida, Marx não só foi pioneiro, como também foi o mais
profundo teórico do proletariado, e por isso é fonte de pesquisa e inspiração
constante. E estava muito distante do leninismo e outras formas semelhantes de
pseudomarxismo. Apesar dos méritos acima elencados de Marx, é preciso ser fiel
aos escritos que são contribuições para a emancipação humana e não todo e
qualquer coisa que ele escreveu ou fez. Os seus méritos não impedem, por
exemplo, de discutir e criticar certas concepções, afirmações, práticas, desde
que isso seja feito honestamente e com fundamentação, coisa que os adversários
pouco éticos não fazem.
Também não se trata de dividir entre “marxistas ortodoxos” e
“marxistas heterodoxos”. As expressões ortodoxia e heterodoxia possuem origem
religiosa. Já refutamos isso no parágrafo anterior. Não se trata de ser “fiel à
doutrina” e sim fiel ao projeto autogestionário e revolucionário da emancipação
humana via constituição de uma sociedade autogerida. E se autodenominar, como
alguns esquerdistas fazem, como “heterodoxos” é tão religioso quanto se
autodeclarar ortodoxo, pois a referência ainda é a doutrina, só que sendo “dissidente”,
o que serve não só para reconhecer que os ortodoxos são realmente “marxistas”
(apesar da distância da perspectiva do proletariado e, por conseguinte, do
pensamento de Marx) como também para confundir ainda mais as posições políticas
dos pseudomarxistas, legitimando-as. Os deformadores do pensamento de Marx
passam a aparecer como sendo “fiéis” ao seu pensamento! Afinal, eles são
“ortodoxos”...
Desta forma, o estranhamento da relação entre marxismo e
autogestão é devido ao fato de que na verdade o que as pessoas pensam quanto
leem a palavra “marxismo” é no pseudomarxismo. Pseudomarxismo e autogestão são
realmente antagônicos, assim como o são a classe burocrática e a classe
proletária. Para ter consciência do antagonismo entre pseudomarxismo e autogestão
basta ler as obras de Kautsky, Bernstein, Lênin, Trotsky, Stálin e milhares de
outros. Basta ler Engels defendendo a autoridade em texto de combate da
dissidência da socialdemocracia nascente; Lênin dizendo que para combater a
barbárie é preciso usar o barbarismo e que só a vanguarda pode libertar o
proletariado; Stálin colocando que os movimentos sociais são “correias de
transmissão” do partido, entre inúmeras outras passagens que mostram o vínculo
burocrático do bolchevismo e semelhantes.
Mas, dizem os conciliadores e relativistas, isto mostra
apenas diferenças de concepção[1]. Na
verdade, é algo mais profundo do que isso. É suficiente olhar a história das
lutas de classes para se perceber isso. Basta recordar o papel do bolchevismo
na burocratização da Rússia, o massacre dos camponeses da Ucrânia e dos
marinheiros em Kronstadt, na época de Lênin, para citar apenas este exemplo. Ou
também basta recordar a proibição das frações dentro do partido bolchevique,
nos quais a oposição foi silenciada e depois mandada para os campos da Sibéria.
O partido bolchevique, na época de Lênin, foi um grande criador de
ex-leninistas, alguns pouco depois antileninistas. Os adversários fora do
partido, anarquistas, socialistas revolucionários, esquerdistas, também não escaparam
do mesmo lugar. Basta olhar o que foi a União Soviética, Leste Europeu e tudo o
que foi chamado de “socialismo” para perceber tal antagonismo. Regimes
ditatoriais falando em nome do socialismo, marxismo, comunismo. Os nazistas
também se diziam socialistas, não por acaso: a melhor forma de dominar os
trabalhadores é dizer que estão do seu lado. Em síntese, não se trata de apenas
“concepções diferentes”, pois estas existem e são produto de coisas muito mais
profundas: a luta de classes e de qual classe cada um escolhe ficar ao lado.
Outra é a relação entre marxismo autêntico e autogestão.
Desde Marx, com sua concepção de comunismo como “produtores livremente
associados”, a ideia de associação operária como embrião da futura sociedade
comunista, passando por Anton Pannekoek, Otto Rühle e outros “comunistas de
conselhos” com sua teoria do sistema de conselhos operários, o autogoverno dos
produtores, até chegar a pensadores e militantes contemporâneos, a ideia de
autogestão é o cerne, a essência, da teoria marxista. Nesse caso, marxismo e
autogestão são inseparáveis. O marxismo autêntico nasce com Marx, tem seu
primeiro problema com Engels, depois os socialdemocratas (Bernstein, Kautsky),
bolchevistas (Lênin, Stálin), mas resiste com Antonio Labriola, Rodolfo
Mondolfo, Anton Pannekoek, Karl Korsch, Otto Rühle, Helmutt Wagner, Herman
Gorter, Sylvia Pankhurst, Guy Aldred, entre diversos outros. Estes foram
ocultados nos livros dos “marxistas”-leninistas e quando citados, era para
criticar o seu “esquerdismo”, a sua crítica da burocracia, do capitalismo
estatal russo, a sua defesa das organizações criadas pelo próprio proletariado
(conselhos de fábrica, conselhos operários, comunas, etc.).
Da mesma forma, o marxismo autêntico, o único marxismo
existente (por mais que alguns “marxistas” de partido “esbravejem” contra tal
afirmação), que, para diferenciar do pseudomarxismo às vezes é chamado de
“libertário” ou “autogestionário”, não se expressa através das lutas dos
partidos socialdemocratas, socialistas, comunistas, dos regimes ditatoriais, das
burocracias sindicais e partidárias em geral. Ele está junto com a Comuna de
Paris (1871); no movimento dos conselhos operários na Alemanha (1918-1921); os
sovietes na Rússia (1917); nos conselhos de fábrica na Itália (1919-1920), nos
conselhos operários na Hungria (1920); na autogestão na Catalunha, na Espanha
(1936-1939), na luta estudantil e operária em maio de 1968 na França; nas
comissões de trabalhadores na Revolução Portuguesa (1974); nos conselhos
operários durante a Revolução Polonesa (1980) contra o capitalismo estatal; nas
lutas de classes na Argentina (1999-2002), bem como nas lutas operárias,
estudantis, camponesas, espontâneas, autônomas ou autogeridas.
O marxismo é a teoria revolucionária do movimento operário
revolucionário. O marxismo é a teoria revolucionária e a autogestão é o
movimento operário revolucionário, numa relação indissolúvel e de reforço
recíproco, uma unidade na diversidade. A Revista Marxismo e Autogestão vem justamente para resgatar essa relação
indissolúvel e contribuir com a superação da separação, o que significa a
superação do pseudomarxismo. É por isso que não será uma revista comum. Grande
parte de seus textos serão republicações, traduções, etc., de textos
esquecidos, marginalizados, apagados, escondidos. Os textos de Marx que foram
escondidos pelos socialdemocratas e bolchevistas é um bom exemplo disso. A
revista também irá publicar textos dos contemporâneos e de pessoas que podem
enviar espontaneamente seus textos, numa abordagem autogestionária, precondição
para publicação. Textos do passado e textos atuais para reconstituir o marxismo
autêntico e fortalecer a luta autogestionária. Esse é o objetivo fundamental
dessa revista.
Esse primeiro número é um bom exemplo do projeto da revista Marxismo e Autogestão. Aqui resgatamos
textos pouco conhecidos e marginalizados, fundamentais para compreender a luta
operária, o capitalismo, o marxismo, as lutas contemporâneas. Um texto curto, mas
interessante, de Marx é apresentado, As Associações
Operárias, pela primeira vez publicado em idioma português. Ele é
enriquecido por outro texto que o comenta, do francês Claude Berger. Outro
texto publicado pela primeira vez em idioma português é o de Guy Aldred, que
foi membro da esquerda extraparlamentar inglesa ao lado de Sylvia Pankhurst,
atacada por Lênin em seu livro O
Esquerdismo, A Doença Infantil do Comunismo. Nesse texto, Aldred apresenta
uma crítica radical aos sindicatos e seu papel na sociedade capitalista.
Ao mesmo tempo apresentamos alguns textos que discutem a
questão da autogestão: as deformações do conceito, sua relação com a tecnologia
e com a educação, suas manifestações concretas através de experiências
históricas, etc. No caso do marxismo, são publicados textos de crítica ao
pseudomarxismo, de recuperação do marxismo autêntico, o que é complementado por
textos de análise marxista das lutas de classes e sobre o capitalismo
contemporâneo. Ou seja, aqui se discute o marxismo, a sociedade do presente, o
projeto da sociedade do futuro e seus esboços. Assim, recuperando o marxismo
autêntico e sua essência autogestionária e analisando a realidade
contemporânea, a revista Marxismo e Autogestão
busca efetivar uma luta cultural para contribuir com a abolição do capitalismo
e instauração da autogestão social.
[1]
Muitos são pessoas honestas e bem intencionadas, que realmente acreditam que o
leninismo (e/ou seus semelhantes) está a favor dos trabalhadores e da
libertação humana. Porém, há uma diferença entre o indivíduo e a
ideologia/organização a que estão ligados. Estes que são sinceros logo se
desligam de suas antigas ideologias e/ou organizações, principalmente no
momento em que elas revelam o seu verdadeiro caráter no contexto das lutas de
classes. Foi assim no passado com muitos e basta citar Anton Ciliga para isso
ser melhor compreendido. Este militante, que atuou inicialmente na revolução
russa como bolchevique, foi perseguido e enviado para a Sibéria, tornando um
crítico do leninismo. É apenas um caso entre milhares e alguns dos textos
destes ex-leninistas estarão sendo publicados aqui. A entrevista de Hedda
Korsch, esposa de Karl Korsch, mostra como pessoas de grande formação
intelectual e honestidade podem, devido ao contexto e outras questões, demorar
muito para abandonar o barco furado dos partidos políticos.
http://redelp.net/revistas/index.php/rma/article/view/edi1/55
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