quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Democratismo e Autogestão - Max Hollander

Democratismo e Autogestão
Max Hollander



A reflexão contemporânea sobre autogestão é marcada por ambiguidades e processos interpretativos problemáticos e disputa em torno do significado da palavra.  A nossa reflexão passa por cima desses obstáculos, refutados por alguns teóricos revolucionários, indo adiante, no sentido de problematizar a questão da autogestão no interior da sociedade capitalista não nas propostas ilusórias que a confundem com cooperativa, mera gestão ou questão administrativa, democracia direta e outras aberrações. O conceito de autogestão aqui é o que foi produzido no contexto da teoria marxista enquanto totalidade que expressa uma nova sociedade. Nesse contexto, a autogestão é um projeto de sociedade futura e não uma realidade presente. A pergunta sobre a possibilidade de autogestão no interior do capitalismo já foi respondida por tal teoria negativamente. A autogestão se realiza na totalidade de uma sociedade e não em empresas, grupos, escolas, existentes hoje. A razão disso é simples: o capitalismo engloba tudo na atual sociedade e qualquer pretensão de fazer “autogestão” no seu interior é ilusão, produção ideológica, forma de cooptação, falácia.

A autogestão é impossível no interior da sociedade capitalista. Ponto final. Não existem empresas “autogeridas” dentro do capitalismo, sejam privadas, estatais, cooperativas, comunitárias ou quaisquer outras. Isso, no entanto, não quer dizer que devemos esperar o futuro grandioso da autogestão e seguir reproduzindo o capitalismo. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, ensina o ditado. A autogestão completa e perfeita dentro do capitalismo é praticamente impossível, mas o esboço da autogestão é possível. No entanto, não são nas cooperativas e empresas que podemos ver esboços de autogestão. A constituição de uma nova sociedade no interior da sociedade atual se manifesta, inicialmente e como esboço, nas lutas de classes. Esquecer esse princípio significa, no fundo, trocar a autogestão pelo democratismo. Esse é um dos principais problemas da luta pela autogestão na sociedade contemporânea.

O democratismo surge como problema quando se pensa a autogestão como mera questão de democracia direta ou administrativa, numa concepção ingênua, superficial ou falaciosa. Isso é comum quanto se separa autogestão e luta de classes. A sociedade autogerida emerge como negação da sociedade capitalista e o proletariado é a classe revolucionária que pode concretizar a nova sociedade. Dito isto, fica claro que é na luta operária, quando ela assume certa radicalidade, que esboça a autogestão. A Revolução Russa de 1917 mostrou esse processo quando ocorreu a formação dos sovietes (conselhos operários) e o mesmo ocorreu na Revolução Alemã e em diversas outras experiências históricas de luta revolucionária do proletariado. Isso, no entanto, não significa cair no obreirismo e assumir a posição do intelectual boçal de querer entrar numa fábrica para se tornar “verdadeiramente revolucionário” ou do jovem intransigente sem formação teórica que acha que somente atuando junto com operários será “revolucionário”.

O movimento operário tende para a autogestão, mas esse é um caminho permeado pela luta de classes, na qual a tendência é atingida por contratendências, ou seja, pela ação das outras classes que buscam frear, deformar, cooptar, iludir, o proletariado, ou, mais precisamente, setores dele. Quando a luta operária chega num determinado nível de radicalidade esse esboço ocorre. Essa radicalidade, no entanto, é um movimento de autonegação e por isso não é trabalhando numa fábrica ou através da prática de apoiar acriticamente as reinvindicações reformistas de determinado setor ou mesmo do conjunto do proletariado que se concretiza uma práxis revolucionária. É justamente negando o proletariado, no sentido de contribuir com o seu próprio processo de autonegação, que se efetiva uma práxis revolucionária e que se contribui com a possibilidade de uma revolução proletária.

Até alguns dos melhores militantes, por sua honestidade e coerência, bem como vínculo afetivo e concreto com a luta pela libertação proletária, como Rosa Luxemburgo, caiu no equívoco do democratismo. Nas organizações revolucionárias do proletariado (quando elas emergem, como os conselhos operários, conselhos de bairros, etc.) não se deve aceitar a presença, participação e inferência das classes contrarrevolucionárias, especialmente da burocracia e da burguesia. Por isso, nada mais reacionário do que a defesa da democracia burguesa ou “assembleia constituinte”, pois a primeira é uma forma policlassista de organização da dominação burguesa e a segunda uma mera manifestação da primeira.

Isso não quer dizer que só devam participar do processo revolucionário indivíduos claramente proletários. Além do proletariado hoje ser na maioria das cidades minoritário, existem seus familiares que também são pertencentes à classe, bem como outras classes exploradas. Isso quer dizer que nas organizações operárias não se aceitam indivíduos burgueses e burocratas ou representantes de organizações burocráticas, como partidos e sindicatos. Isso dá margem a muita confusão, pois é preciso separar indivíduo e classe e obviamente que alguns poucos indivíduos da classe capitalista ou da classe burocrática poderão mudar de lado e apoiar a revolução proletária, mas isso é coisa para cada caso concreto e cabe às organizações proletárias estarem atentos a este processo.

Contudo, alguns, em nome do “princípio democrático”, que outros ingenuamente confundem com autogestão, pensam que todos podem e devem participar. A raiz dessa forma de pensar se encontra em determinadas ideologias burguesas, especialmente o humanismo abstrato, que pensa em uma democracia radical confundida com autogestão. No humanismo abstrato, todos são “bons por natureza” e é possível “diálogo” e “união” com todos. No entanto, a realidade não é tão simples assim. Até mesmo indivíduos proletários ou de outras classes exploradas podem assumir posições contrarrevolucionárias e devem ser combatidos, inclusive, em alguns casos, até mesmo grupos ou setores inteiros da classe operária ou de outras classes exploradas. Existem conselhos de fábrica que caem sob hegemonia burguesa ou burocrática, bem como outros que simplesmente se corrompem, e por isso devem ser combatidos. Ser proletário não é uma “essência metafísica” e sim uma condição social que gera tendências, necessidades, interesses, etc., que gera a potencialidade revolucionária da classe em seu conjunto e dos indivíduos pertencentes a ela, mas a passagem da potencia ao ato, a realização da tendência, a transformação do ser em seu dever-ser é algo que não ocorre homogeneamente e simultaneamente. É produto da luta de classes e, portanto é necessário lutar também contra indivíduos e grupos no interior do proletariado. Claro está que se trata de outro tipo de luta, geralmente no plano cultural, mas nem por isso deixa de existir.

O princípio democrático que é fonte do democratismo é não-marxista, pois desconsidera a realidade concreta, as relações sociais reais, confundindo-a com o plano perfeito ou com a igualdade e liberdade totais, no interior do capitalismo. No campo da luta de classes, o que se tem é luta e não democratismo. A autogestão é um projeto de sociedade e não uma realidade. O seu esboço ocorre na luta e só se concretiza através dela. É por isso que numa concepção autogestionária é inaceitável a democracia burguesa, assembleia constituinte, ou qualquer outra forma burguesa de dominação disfarçada de participacionismo que apenas esconde o processo de controle oculto por palavras bonitas, como “democracia” e “autogestão”.

O proletariado, com o avanço de suas lutas, gera formas de auto-organização de classe e estas não são completamente e imediatamente autogeridas, mas tendem a se tornar assim, principalmente com o seu processo de radicalização, articulação e generalização. As formas de auto-organização gestadas pelo proletariado são diferentes das organizações burocráticas que aglutinam indivíduos proletários sob domínio da burocracia (partidos políticos) ou das que transformam alguns destes em burocratas para dirigir os demais (sindicatos). Esse é o caso de muitos comitês de greve. Esses surgem das necessidades da greve, da luta, meio de satisfazer outras necessidades (as reivindicações salariais, entre outras). Os comitês de greve não são organizações autogeridas, pois seu objetivo está determinado alhures, mas são um esboço de autogestão, no sentido de que eles, como delegados da categoria ou empresa, coordenam o movimento grevista. Se estes comitês, como já ocorreu muitas vezes em diversas experiências históricas, se transformam em conselhos de fábrica, aumentam sua autonomia e capacidade de luta, passam a ter mais responsabilidade além da greve, entre outros aspectos que a colocam com um esboço mais amplo de autogestão. Se além dessa forma organizativa há também um objetivo revolucionário decidido livremente pelos trabalhadores, é possível dizer que já se trata de autogestão das lutas. Quando a greve se torna de ocupação ativa e os conselhos de fábrica passam a gerir por conta própria as fábricas, tal esboço se torna ainda mais amplo, pois significa que a produção começa a ser controlada pelos trabalhadores. É possível dizer que se trata de uma autogestão parcial da produção[1]. Se tais conselhos de fábrica se articulam com os de outras fábricas e passam a não somente gerir a produção em sua fábrica, mas articular com outros conselhos que fazem isto em outras empresas e também atuar sobre o processo de distribuição do que é produzido e outros processos relacionados, há uma ampliação ainda maior da autogestão. Temos aqui uma autogestão parcial da sociedade, que só se torna total com a abolição completa do capital e do Estado.

Esse processo, tal como aqui apresentado, emerge do processo de produção para a sociedade em geral. No entanto, a luta de classes e a autogestão devem ocorrer no conjunto das relações sociais. Aqui entra a questão das demais classes exploradas, do processo de formação (cultural, educacional), da luta de classes na sociedade civil (onde entra também a questão dos grupos revolucionários e dos movimentos sociais). A autogestão generalizada tem como elemento fundamental a luta de classes na produção, a transformação do modo de produção capitalista em modo de produção comunista ou autogerido. A constituição de novas relações de produção não podem se concretizar sem a produção de novas relações sociais nas outras instâncias da sociedade, o que Marx denominou “superestrutura” e nos modos de produção não-capitalistas. A rearticulação das relações entre cidade e campo, a abolição do aparato estatal, a emergência de um novo modo de educação, entre diversos outros elementos, vão devem ser constituídos em consonância com a transformação das relações de produção. Em alguns casos, como na rebelião estudantil de maio de 1968, pode até anteceder, sob a forma de luta, tal transformação ou servir de incentivo para ela.
É justamente no espaço da sociedade civil que o democratismo mais se confunde com a autogestão social. Isto ocorre pela hegemonia burguesa, composição social muitas vezes policlassista, entre diversas outras determinações. É nesse momento, portanto, que devemos distinguir claramente democratismo e autogestão. O democratismo acaba se tornando uma espécie de doutrina que possui dois princípios fundamentais: a “decisão democrática” e o igualitarismo abstrato e ilusório. A decisão democrática é uma autoilusão que prega a necessidade da decisão da maioria (em alguns casos até o “consenso”) aplicada em qualquer situação, grupo, processo, indistintamente. Aqui se mostra toda a fragilidade de todas as concepções não-marxistas que querem supostamente uma transformação social. As relações sociais concretas, reais, as condições sob as quais estas relações se desenvolvem, as relações estabelecidas com outras situações, grupos, processos, são desconsiderados.

A base de tal desconsideração sobre as condições sociais reais encontra-se no segundo princípio, o igualitarismo abstrato e ilusório. Este considera que todos devem participar da mesma forma partindo do pressuposto que todos são iguais e possuem a mesma capacidade de decisão. Sem dúvida, aqui temos novas abstrações e afastamento das relações sociais concretas: as diferenças de classe, sexo, raça, cultura em geral, formação intelectual, grau de influência de ideologias e concepções burguesas, condições de vida, entre inúmeras outras são simplesmente desconsideradas. A igualdade formal entra em contradição com a desigualdade real. Assim, não será difícil ver alguém exigir a participação igualitária das mulheres em determinado coletivo político, apesar das que estão no mesmo, efetivamente, não participarem ou então que um indivíduo proletário sem uma compreensão teórica ou mais ampla tenha suas intervenções visivelmente equivocadas recebam o mesmo tipo de consideração que outras mais adequadas e com perceptível entendimento teórico da problemática em questão.

Diante do democratismo, que é uma derivação doutrinária (e que gera ideologias quando sistematizada) da democracia (burguesa), resta a outra posição burguesa: tendo em vista a desigualdade real, então não é possível uma igualdade formal. O democratismo se apega à igualdade formal e exige sua concretização real ou faz de conta que é praticada. O elitismo burguês (do qual o burocratismo e o leninismo é uma variante) reconhece a desigualdade real e a transforma em desigualdade formal, instituindo a relação entre dirigentes e dirigidos, hierarquias, etc. No primeiro caso, o processo decisório é realizado por todos indistintamente e no segundo caso apenas pela cúpula dirigente.

Na sociedade autogerida não existe nem desigualdade real nem formal. O processo decisório é fundado na autogestão generalizada, o que significa que o processo de decisão coletiva ocorre tanto a nível das questões sociais mais amplas e gerais, quanto a nível das atividades mais específicas e realizadas por pequenos grupos, empresas, etc. No entanto, essa é uma sociedade do futuro e que pressupõe que o Estado, o capital, o mercado, o dinheiro, a exploração, a dominação foram abolidos e um novo modo de educação e formação em geral, novas relações sociais, novos indivíduos constituídos a partir delas, existirão, o que permite a realização plena da autogestão.

Na sociedade atual, a autogestão é incongruente com as relações sociais concretas, tanto as relações de produção quanto o conjunto das demais relações sociais. O democratismo parte de um voluntarismo que abstrai tal contexto social e histórico. É o mesmo que pensar na possibilidade de que as ideologias teológicas da sociedade feudal pudessem ser dominantes na sociedade capitalista. As organizações revolucionárias, as lutas sociais, entre outros aspectos da sociedade civil, ocorrem no interior do capitalismo e possuem uma desigualdade real em sua base. Os princípios de uma organização autogerida não se concretizam sob forma perfeita e sim sob forma parcial, tal como no caso das organizações dos trabalhadores e o grau em que se aproxima do ideal depende dos indivíduos que compõem o coletivo, de seu engajamento, de suas condições de vida, do contexto histórico (em momentos de acirramento das lutas de classes há a tendência em haver maior engajamento, por exemplo), da formação intelectual e clareza programática, entre outras determinações. Um primeiro ponto a perceber é que tais organizações podem ser autogestionárias, ou seja, possuir a autogestão (a constituição da sociedade comunista autogovernada) como finalidade e ser, internamente, um esboço de autogestão, ou seja, ser uma autogestão parcial, pois dificilmente conseguirá ser total e completa, mesmo porque sua própria existência é produto da sociedade capitalista. A razão de ser da existência de grupos revolucionários é a necessidade da transformação social e ela ocorre através de um conjunto de atividades que não são a vida em sua totalidade.

A importância da cultura e da produção intelectual (teórica, artística, etc.), dos grupos revolucionários, dos movimentos sociais radicais, entre outros exemplos de formas de manifestação da luta de classes na sociedade civil reside tanto no impacto que ela tem na luta de classes na produção quanto na constituição de um esboço de autogestão em outras relações sociais que também farão parte da nova sociedade. A autogestão da produção é acompanhada com a autogestão do processo de formação, o que significa que um novo modo de produção gera um novo modo de educação, para ficar em apenas um exemplo. Uma sociedade autogerida pressupõe um nível de consciência extremamente elevado[2] do conjunto da população para realizar o conjunto de atividades (desde as relações de produção até a produção intelectual). Da mesma forma, tanto os trabalhadores no processo de produção e luta, precisam ampliar sua consciência no que se refere aos aspectos e relações existentes em sua atividade laborativa e nos confrontos sociais, quanto os indivíduos revolucionários necessitam de um saber sobre as questões políticas e sociais gerais, além da necessidade de refletir sobre a própria atividade revolucionária.

Tendo em vista estes aspectos, é necessário entender que numa organização revolucionária ou outro lugar de atuação política, não é possível abstrair a desigualdade real. Não se deve nem agir como o democratismo, fazer de conta que não existe ou que o mero voluntarismo pode resolver facilmente, nem como o leninismo que o reconhece e reforça. Reconhecer a desigualdade real é fundamental e lutar contra suas bases (tanto na luta por uma nova sociedade quanto na luta para diminuir o grau de diferença, sempre no sentido de melhorar e não de rebaixar, ou seja, nivelar pelo alto e não por baixo) ao lado de saber conviver e trabalhar com isso. Não é possível, por exemplo, tratar um indivíduo com todo um histórico de luta, engajamento, compromisso e ética da mesma forma que um recém chegado ou um militante esporádico, sob o pretexto do “princípio democrático”. No aspecto formal e organizacional há um tratamento igual e também nos processos concretos, mas o peso da ação e concepção acaba sendo distinto, pois revela uma desigualdade real, e no caso de uma disputa interna tal desigualdade deve ser considerada, pois ela é relevante para as tomadas de posição. Isso também ocorre quando é necessário redigir um manifesto ou qualquer outro texto, que não pode ser produzido por todos. O coletivo pode até dar as diretrizes gerais do documento, mas não sua redação concreta. E se existe alguém analfabeto no seu interior, é obvio que ele não será o indivíduo encarregado disso. Esse é um exemplo extremo, mas que ajuda a entender que em certos campos, que exige saber técnico, etc., então a desigualdade deve ser reconhecida e no processo de escolha deve ser fundamental para a tomada de decisão. O que deve ocorrer, para manter o caráter autogestionário, é que – no caso desse exemplo, mas que vale para todos os demais – a decisão coletiva e as diretrizes gerais sejam do todo (com suas imperfeições provocadas pelo fato de ocorrer no capitalismo, tal como baixa ou não participação de muitos, pouca reflexão de outros, etc.) e que o documento seja posteriormente aprovado (ou não), modificado, etc., pelo conjunto dos militantes[3]. Ao lado disso e lutando contra esse processo, é necessário buscar minimizar as desigualdades reais, o que é possível em alguns casos, mas não em outros (por exemplo, pertencimento de classe: um indivíduo lumpemproletário não poderá mudar de classe por ação do coletivo, pois isso não está ao seu alcance). Esse é o caso da formação intelectual, inclusive devido sua importância para a própria organização e para a constituição da sociedade autogerida. Atuar nesse processo é equivalente a incentivar a autoformação individual, socializar informações, etc., ao lado de atividades mais estruturadas, como cursos de formação, grupos de estudos, etc.

O democratismo é uma forma sem conteúdo e algo que se coloca como seu próprio objetivo. A concepção autogestionária entende a autogestão como meio e fim. A autogestão não é algo cujo objetivo é tão-somente se concretizar na organização revolucionária e sim sua generalização na sociedade, o que pressupõe luta de classes e ação revolucionária, que pode se reproduzir internamente e ganhar processos de conflitos e outros problemas. A autogestão “imperfeita” é algo alheia à vontade do coletivo e apenas os hipócritas diriam que ela é “perfeita” em algum caso concreto. No entanto, o objetivo que é a autogestão generalizada, a revolução proletária e emancipação humana, é mais importante do que a organização e por isso, se ela em nome do democratismo deixa de lado o objetivo final e fundamental, então deve ser combatida e superada (no caso individual pode significar afastamento e engajamento em outras iniciativas). Da mesma forma que conselhos de fábrica que se corrompem ou realizam adesão ao reformismo, os coletivos que caminham nesse sentido também devem ser combatidos.

O projeto autogestionário pressupõe um conteúdo revolucionário e não se pode sacrificar o conteúdo por causa da forma. A autogestão imperfeita interna não é nem democratismo nem burocratismo e nem objetivo em si mesmo, é meio para o objetivo final que é a autogestão perfeita e completa, o que significa transformação social do conjunto das relações sociais no sentido de constituir uma sociedade autogerida. Os indivíduos e grupos que não entenderam isso não são autenticamente revolucionários, por mais que pensem ou digam isso. A ignorância e a autoilusão nunca foram revolucionárias. A teoria é fundamental para qualquer projeto de transformação radical da sociedade. Ela é um esboço de tal transformação e é graças a ela que se pode questionar e superar o democratismo e recuperar o verdadeiro significado da autogestão.




[1] Esse caráter parcial deriva do fato de que a finalidade da produção e diversos outros aspectos (matérias-primas, distribuição da produção, etc.) não é decidido pelo conselho de fábrica e nem pela classe proletária em sua totalidade.

[2] E por isso nada mais antimarxista e reacionário do que o anti-intelectualismo. Querer contribuir com a formação de uma nova sociedade, fundada na autogestão ou igualdade, anarquia, etc., recusando o aprofundamento do saber (em suas múltiplas manifestações, tais como a técnica, teórica, etc.) é sinal de no fundo nada entende do processo de transformação e constituição do comunismo. Um bando de ignorantes pouco conhecedores dos processos técnicos de produção, da organização social, das necessidades sociais em geral, só poderiam gerar uma idiocracia, mais ou menos como foi tematizado em filme com este título.

[3] Nesse caso o indivíduo que redige o documento é um executante da decisão coletiva e não um dirigente, como nas organizações leninistas e burocráticas em geral. É importante ressaltar que os critérios de escolhas devem se basear na capacidade técnica, na responsabilidade, na disposição e disponibilidade. Da mesma forma, é necessário discutir internamente que as pessoas não deveriam se dispor a realizar atividades que não possuem o necessário acúmulo para fazê-lo (não basta apenas a vontade, a não ser que essa se concretize com o processo de superação, o que para ocorrer necessita, no mínimo, de um certo tempo). É o mesmo que alguém que nada entende de informática se colocar como responsável pela execução de uma atividade que requer um saber sobre ela.

Artigo publicado originalmente em Revista Marxismo e Autogestão, Vol. 01, num. 02, jul./dez. de 2014.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Por um Marxismo Autogestionário!!!

Por um Marxismo Autogestionário


O fracasso do total da socialdemocracia, engolida pelo neoliberalismo e reduzida a ala esquerda do mesmo com o seu microrreformismo, e do bolchevismo, decadente desde a crise do capitalismo estatal, é um momento que a retomada do marxismo se torna ordem do dia. A socialdemocracia e o bolchevismo (“marxismo”-leninismo) não foram superados? A superação teórica da socialdemocracia data do início do século 20 e a do bolchevismo alguns anos depois, enquanto que a superação prática ainda se concretizou totalmente, mas se iniciou com a ascensão do neoliberalismo e fracasso do capitalismo de Estado. No entanto, socialdemocracia e bolchevismo, como já colocava o historiador Arthur Rosenberg, nada tem a ver com o marxismo e a derrocada dessas ideologias e suas instituições (especialmente os partidos da pseudoesquerda) abrem espaço para a retomada do marxismo autêntico.

O marxismo autêntico surgiu com as obras de Marx e Engels, aproximadamente na metade do século 19, ainda durante o regime de acumulação extensivo, sendo sua primeira fase de desenvolvimento. Já na época próxima a morte de Marx e recuo do movimento operário após a derrota da Comuna de Paris, emergindo o regime de acumulação intensivo, temos o marxismo resiliente de Marx convivendo com o nascimento do pseudomarxismo da socialdemocracia. Esta, após a morte de Marx e inicialmente com a colaboração de Engels, será a tendência hegemônica e supostamente “ortodoxa”, o que durará até a primeira crise do regime de acumulação intensivo. O que havia de mais próximo do marxismo era a dissidência no interior da socialdemocracia, representada pelos tribunistas holandeses (Holand-Host, Pannekoek, Gorter), Rosa Luxemburgo e seus aliados na Alemanha (que posteriormente formariam a Liga Spartacus), entre outros. O marxismo autêntico sobreviveria, nessa época, marginalmente, com indivíduos afastados (como Antonio Labriola) ou críticos e opositores da socialdemocracia (Makhaïsky).

A crise do regime de acumulação intensivo que gera a primeira guerra mundial marca um avanço no sentido de superação da socialdemocracia, emergindo as diversas tendências do “socialismo radical”, na qual as tendências representadas pelo espartaquismo (Rosa Luxemburgo, Karl Liebnecht, Leo Jogiches, Franz Mehring, etc.), o comunismo internacionalista (Otto Rühle e outros) e Esquerda de Breme (Pannekoek, Gorter e outros) são aqueles que retomam vários aspectos do marxismo e avançam para a retomada do marxismo autentico, que, no entanto, só ocorrerá efetivamente alguns anos depois. A emergência do bolchevismo e do golpe de estado de 1917 na Rússia abre uma nova hegemonia no pseudomarxismo. A nova ortodoxia, herdeira e substituta da socialdemocracia, no fundo partilhava seus elementos essenciais, só que com maior “radicalismo” discursivo e com estratégia insurrecionalista ao invés de eleitoral, o que permitiu, principalmente por falta de informações sobre o que ocorria no primeiro país capitalista estatal, uma ação conjunta. A Revolução Alemã e a tentativa de uma nova hegemonia (“ortodoxia”), a do bolchevismo (que vai desembocar na bolchevização dos partidos comunistas) abriu o momento para finalmente haver um ressurgimento do marxismo autêntico, através da ruptura dos “comunistas de conselhos” (Pannekoek, Rühle, Gorter, Wagner, Mattick, etc.) com os bolcheviques, “comunistas de partido”. Nesse mesmo momento, a esquerda extraparlamentar inglesa com Sylvia Pankhurst e outros também rompiam com o bolchevismo e colaboravam nessa retomada do marxismo.

A derrota do movimento revolucionário do proletariado na Rússia, Alemanha, Hungria, Itália, entre outros países, promoveu um recuo do marxismo autêntico no plano da luta política, embora o comunismo de conselhos tenha se preservado através de diversos grupos políticos e produção intelectual. A ascensão do nazifascismo, no entanto, acabou obliterando o marxismo autêntico na Europa Ocidental e o bolchevismo acabou saindo como a grande expressão do marxismo através de sua deformação e transformação em ideologia legitimadora do capitalismo estatal nacional russo, que culmina com o stalinismo e seu irmão gêmeo supostamente opositor, o trotskismo. A Segunda Guerra Mundial foi o final desse capítulo da história e o regime de acumulação conjugado, emergente após isto, promoveu uma estratégia de manutenção do capitalismo através dos grandes oligopólios transnacionais que dividiu a classe operária mundial, garantido, graças à superexploração do proletariado do capitalismo subordinado (“terceiro mundo”), a estabilidade do capitalismo imperialista através de transformação dos sindicatos em aparatos do capital e elevação dos níveis salariais e de consumo (graças, além da exploração internacional, do fordismo, produção em massa, sistema de crédito, etc.). O marxismo autêntico se manteve vivo graças à colaboração teórica do comunismo conselhista (Pannekoek, Mattick, Korsch), mas sem grande ressonância nas lutas sociais, bem como em posições ambíguas, tal como o situacionismo e outras. A crise do regime de acumulação conjugado contribuiu para uma retomada parcial do marxismo autêntico, tanto no sentido de retomar a radicalidade do pensamento de Marx quanto dos comunistas de conselhos, além de outras contribuições marginais.


A ascensão do neoliberalismo e derrocada do capitalismo estatal, a partir da emergência do regime de acumulação integral, enfraqueceram bastante as duas principais formas de deformação do marxismo, o pseudomarxismo socialdemocrata e bolchevique. Isso abriu espaço para retomado, mesmo que parcial e ambígua, muitas vezes de forma dogmática ou eclética, do marxismo autêntico. É nesse momento que começa a emergir uma nova fase do marxismo autêntico, que retoma as contribuições fundamentais de Marx, do comunismo de conselhos e outros intelectuais, grupos, militantes, que foram marginalizados, colocando como centro da teoria marxista o projeto autogestionário. Assim, o marxismo autogestionário é a forma atual e contemporânea de manifestação do marxismo autêntico. Sem dúvida, o marxismo sempre foi autogestionário, apesar das falsificações ideológicas que tentaram lhe retirar esse caráter. Contudo, a síntese atual do marxismo com a retomada desse caráter autogestionário, com sua atualização e foco no projeto de sociedade futura para lhe distinguir de todas as deformações do marxismo que buscam, quando buscam, apenas a reforma do capitalismo. Não se trata de lutar por um capitalismo reformado, seja com “estado de bem estar social” (uma impossibilidade no capitalismo contemporâneo) ou capitalismo estatal, ou qualquer outra proposta que não abole o capital e seus aparatos de reprodução (tal como o Estado) e sim pela autogestão social. Por isso é o momento do marxismo autogestionário, a forma contemporânea do marxismo autêntico. Então é hora de consolidar, tanto na teoria quanto na prática, o marxismo autogestionário, a expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado na época contemporânea, uma era que anuncia uma nova crise do capitalismo e a possibilidade da revolução proletária e emancipação humana.

Editorial da Revista Marxismo e Autogestão, ano 01, vol. 01, num. 02, 2014:

sábado, 3 de janeiro de 2015

Revista Marxismo e Autogestão 02 online!

V. 1, N. 2 (2014)

MARXISMO E AUTOGESTÃO 2

Revista Marxismo e Autogestão, número 02, 2014.

EDIÇÃO COMPLETA

Ver ou baixar a edição completaREVISTA COMPLETA

SUMÁRIO

EDITORIAL

Por um Marxismo AutogestionárioTEXTO COMPLETO
Revista Marxismo e Autogestão2-5

ANÁLISE MARXISTA

A Luta Operária e os Limites do "Autonomismo"TEXTO COMPLETO
Karl Jensen6-15
Crítica ao EspecifismoTEXTO COMPLETO
Serge Tardieu16-23

MARX, MARXISMO E MARXISTAS

A Essência do MarxismoTEXTO COMPLETO
Nildo Viana24-37
Sobre os Intelectuais: Mattick e Viana contra Nomad e FoucaultTEXTO COMPLETO
Erisvaldo Souza38-46
Conselhismo e BordiguismoTEXTO COMPLETO
Lucas Maia47-59

CRÍTICA DO PSEUDOMARXISMO

Teses Sobre o BolchevismoTEXTO COMPLETO
Helmutt Wagner60-88
Leninismo e Capitalismo de EstadoTEXTO COMPLETO
Noam Chomsky89-91
Lênin e o MaterialismoTEXTO COMPLETO
Diego Anjos92-103
Adeus ao TrotskismoTEXTO COMPLETO
Karl Jensen104-109
Grupos Krisis: A Montanha Pariu um RatoTEXTO COMPLETO
Charles Reeve110-114

CAPITALISMO E LUTA DE CLASSES

O Direito à RevoluçãoTEXTO COMPLETO
Pierre Leroy115-117
O CapitalTEXTO COMPLETO
Friedrich Engels118-126
O Medo, A Coragem e a PolíticaTEXTO COMPLETO
Erich Carlton127-130
O Caráter RevolucionárioTEXTO COMPLETO
Erich Fromm131-146

EXPERIÊNCIAS AUTOGESTIONÁRIAS

A Revolução RussaTEXTO COMPLETO
Maurice Brinton147-159
A Revolução AlemãTEXTO COMPLETO
Anton Pannekoek160-168
Revolução e Contrarrevolução na EspanhaTEXTO COMPLETO
GIKH Grupo Comunista Internacionalista da Holanda169-187

TEORIAS DA AUTOGESTÃO

Experiências Autogestionárias: A Lição da PráticaTEXTO COMPLETO
Lucien Rivière188-190

AUTOGESTÃO E IDEOLOGIA

Autogestão e IdeologiaTEXTO COMPLETO
Nildo Viana191-209

PROBLEMAS DA AUTOGESTÃO

Democratismo e AutogestãoTEXTO COMPLETO
Max Hollander210-220

ESCRITOS ATUAIS DO PASSADO

O Manifesto dos Três de ZuriqueTEXTO COMPLETO
Karl Marx221-229

RESENHAS

Anton Pannekoek e a Superação dos Partidos e SindicatosTEXTO COMPLETO
Mauro José Cavalcanti230-234
Marx Segundo KorschTEXTO COMPLETO
Paul Mattick235-240

Revista Marxismo e Autogestão 01

V. 1, N. 1 (2014)

MARXISMO E AUTOGESTÃO 01

Revista Marxismo e Autogestão, número 01.

SUMÁRIO

EDITORIAL

Marxismo e AutogestãoTEXTO COMPLETO
 2-8

ANÁLISE MARXISTA

O Capitalismo Estatal CubanoTEXTO COMPLETO
John Taylor9-15
Crítica aos ZapatistasTEXTO COMPLETO
Charles Reeve, Silvye Deneuve, Marc Geoggroy16-34
Das Lutas de Classes às Brigas PessoaisTEXTO COMPLETO
Nildo Viana35-54

MARX, MARXISMO E MARXISTAS

Memórias de Karl Korsch - EntrevistaTEXTO COMPLETO
Hedda Korsch56-74
Notas Sobre Antonio Labriola e sua Importância para a Teoria e História do MarxismoTEXTO COMPLETO
Karl Korsch75-77
Nildo Viana: Crítica do Capitalismo e Projeto AutogestionárioTEXTO COMPLETO
Maria Angélica Peixoto78-103

CRÍTICA DO PSEUDOMARXISMO

O Renegado Kautsky e seu Discípulo LêninTEXTO COMPLETO
Jean Barrot104-114
Althusser e a Interpretação Ideológica do Pensamento de Karl KorschTEXTO COMPLETO
Nildo Viana115-128

CAPITALISMO E LUTA DE CLASSES

Teses Sobre os Movimentos SociaisTEXTO COMPLETO
Karl Jensen129-137
O Vento ou a Vida - O Modo de Vida Capitalista como Modo de Vida FútilTEXTO COMPLETO
Pierre Leroy138-142

TEORIAS DA AUTOGESTÃO

Filosofia e AutogestãoTEXTO COMPLETO
Jean-Luc Percheron143-148

EXPERIÊNCIAS AUTOGESTIONÁRIAS

As Lições da Revolução PortuguesaTEXTO COMPLETO
Maurice Brinton149-168
O Imprevisto da História: A Revolução PortuguesaTEXTO COMPLETO
Charles Reeve169-183
Revolução e Autogestão na UcraniaTEXTO COMPLETO
Piotr Archinov184-187

AUTOGESTÃO E FORMAÇÃO

Autogestão e FormaçãoTEXTO COMPLETO
Leon Rodriguez188-202

PROBLEMAS DA AUTOGESTÃO

Autogestão e Tecnologia CapitalistaTEXTO COMPLETO
Marc Willians203-214

AUTOGESTÃO E IDEOLOGIA

Autogestão no Capitalismo: Uma Equação ComplicadaTEXTO COMPLETO
Carlos Ladeia, Elisete Natário215-230

ESCRITOS ATUAIS DO PASSADO

As Associações OperáriasTEXTO COMPLETO
Karl Marx231-232
Marx e as Associações OperáriasTEXTO COMPLETO
Claude Berger233-235
Sindicalismo e Luta de ClassesTEXTO COMPLETO
Guy Aldred236-251

RESENHAS

Através do Poder - Resenha do livro O Que são Partidos Políticos?TEXTO COMPLETO
Rafael Saddi Teixeira252-255