Democratismo e Autogestão
Max Hollander
A reflexão contemporânea sobre autogestão é marcada por
ambiguidades e processos interpretativos problemáticos e disputa em torno do
significado da palavra. A nossa reflexão
passa por cima desses obstáculos, refutados por alguns teóricos
revolucionários, indo adiante, no sentido de problematizar a questão da
autogestão no interior da sociedade capitalista não nas propostas ilusórias que
a confundem com cooperativa, mera gestão ou questão administrativa, democracia
direta e outras aberrações. O conceito de autogestão aqui é o que foi produzido
no contexto da teoria marxista enquanto totalidade que expressa uma nova
sociedade. Nesse contexto, a autogestão é um projeto de sociedade futura e não
uma realidade presente. A pergunta sobre a possibilidade de autogestão no
interior do capitalismo já foi respondida por tal teoria negativamente. A
autogestão se realiza na totalidade de uma sociedade e não em empresas, grupos,
escolas, existentes hoje. A razão disso é simples: o capitalismo engloba tudo
na atual sociedade e qualquer pretensão de fazer “autogestão” no seu interior é
ilusão, produção ideológica, forma de cooptação, falácia.
A autogestão é impossível no interior da sociedade
capitalista. Ponto final. Não existem empresas “autogeridas” dentro do
capitalismo, sejam privadas, estatais, cooperativas, comunitárias ou quaisquer
outras. Isso, no entanto, não quer dizer que devemos esperar o futuro grandioso
da autogestão e seguir reproduzindo o capitalismo. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra,
ensina o ditado. A autogestão completa e perfeita dentro do capitalismo é
praticamente impossível, mas o esboço da autogestão é possível. No entanto, não
são nas cooperativas e empresas que podemos ver esboços de autogestão. A
constituição de uma nova sociedade no interior da sociedade atual se manifesta,
inicialmente e como esboço, nas lutas de classes. Esquecer esse princípio
significa, no fundo, trocar a autogestão pelo democratismo. Esse é um dos
principais problemas da luta pela autogestão na sociedade contemporânea.
O democratismo surge como problema quando se pensa a
autogestão como mera questão de democracia direta ou administrativa, numa
concepção ingênua, superficial ou falaciosa. Isso é comum quanto se separa
autogestão e luta de classes. A sociedade autogerida emerge como negação da
sociedade capitalista e o proletariado é a classe revolucionária que pode
concretizar a nova sociedade. Dito isto, fica claro que é na luta operária,
quando ela assume certa radicalidade, que esboça a autogestão. A Revolução Russa
de 1917 mostrou esse processo quando ocorreu a formação dos sovietes (conselhos
operários) e o mesmo ocorreu na Revolução Alemã e em diversas outras
experiências históricas de luta revolucionária do proletariado. Isso, no
entanto, não significa cair no obreirismo e assumir a posição do intelectual
boçal de querer entrar numa fábrica para se tornar “verdadeiramente
revolucionário” ou do jovem intransigente sem formação teórica que acha que
somente atuando junto com operários será “revolucionário”.
O movimento operário tende para a autogestão, mas esse é um
caminho permeado pela luta de classes, na qual a tendência é atingida por
contratendências, ou seja, pela ação das outras classes que buscam frear,
deformar, cooptar, iludir, o proletariado, ou, mais precisamente, setores dele.
Quando a luta operária chega num determinado nível de radicalidade esse esboço
ocorre. Essa radicalidade, no entanto, é um movimento de autonegação e por isso
não é trabalhando numa fábrica ou através da prática de apoiar acriticamente as
reinvindicações reformistas de determinado setor ou mesmo do conjunto do
proletariado que se concretiza uma práxis revolucionária. É justamente negando
o proletariado, no sentido de contribuir com o seu próprio processo de
autonegação, que se efetiva uma práxis revolucionária e que se contribui com a
possibilidade de uma revolução proletária.
Até alguns dos melhores militantes, por sua honestidade e
coerência, bem como vínculo afetivo e concreto com a luta pela libertação
proletária, como Rosa Luxemburgo, caiu no equívoco do democratismo. Nas
organizações revolucionárias do proletariado (quando elas emergem, como os
conselhos operários, conselhos de bairros, etc.) não se deve aceitar a
presença, participação e inferência das classes contrarrevolucionárias,
especialmente da burocracia e da burguesia. Por isso, nada mais reacionário do
que a defesa da democracia burguesa ou “assembleia constituinte”, pois a
primeira é uma forma policlassista de organização da dominação burguesa e a
segunda uma mera manifestação da primeira.
Isso não quer dizer que só devam participar do processo
revolucionário indivíduos claramente proletários. Além do proletariado hoje ser
na maioria das cidades minoritário, existem seus familiares que também são
pertencentes à classe, bem como outras classes exploradas. Isso quer dizer que
nas organizações operárias não se aceitam indivíduos burgueses e burocratas ou
representantes de organizações burocráticas, como partidos e sindicatos. Isso
dá margem a muita confusão, pois é preciso separar indivíduo e classe e
obviamente que alguns poucos indivíduos da classe capitalista ou da classe
burocrática poderão mudar de lado e apoiar a revolução proletária, mas isso é
coisa para cada caso concreto e cabe às organizações proletárias estarem
atentos a este processo.
Contudo, alguns, em nome do “princípio democrático”, que
outros ingenuamente confundem com autogestão, pensam que todos podem e devem
participar. A raiz dessa forma de pensar se encontra em determinadas ideologias
burguesas, especialmente o humanismo abstrato, que pensa em uma democracia
radical confundida com autogestão. No humanismo abstrato, todos são “bons por
natureza” e é possível “diálogo” e “união” com todos. No entanto, a realidade
não é tão simples assim. Até mesmo indivíduos proletários ou de outras classes
exploradas podem assumir posições contrarrevolucionárias e devem ser
combatidos, inclusive, em alguns casos, até mesmo grupos ou setores inteiros da
classe operária ou de outras classes exploradas. Existem conselhos de fábrica
que caem sob hegemonia burguesa ou burocrática, bem como outros que
simplesmente se corrompem, e por isso devem ser combatidos. Ser proletário não
é uma “essência metafísica” e sim uma condição social que gera tendências,
necessidades, interesses, etc., que gera a potencialidade revolucionária da
classe em seu conjunto e dos indivíduos pertencentes a ela, mas a passagem da
potencia ao ato, a realização da tendência, a transformação do ser em seu
dever-ser é algo que não ocorre homogeneamente e simultaneamente. É produto da
luta de classes e, portanto é necessário lutar também contra indivíduos e
grupos no interior do proletariado. Claro está que se trata de outro tipo de
luta, geralmente no plano cultural, mas nem por isso deixa de existir.
O princípio democrático que é fonte do democratismo é
não-marxista, pois desconsidera a realidade concreta, as relações sociais
reais, confundindo-a com o plano perfeito ou com a igualdade e liberdade
totais, no interior do capitalismo. No campo da luta de classes, o que se tem é
luta e não democratismo. A autogestão é um projeto de sociedade e não uma
realidade. O seu esboço ocorre na luta e só se concretiza através dela. É por
isso que numa concepção autogestionária é inaceitável a democracia burguesa,
assembleia constituinte, ou qualquer outra forma burguesa de dominação
disfarçada de participacionismo que apenas esconde o processo de controle
oculto por palavras bonitas, como “democracia” e “autogestão”.
O proletariado, com o avanço de suas lutas, gera formas de
auto-organização de classe e estas não são completamente e imediatamente
autogeridas, mas tendem a se tornar assim, principalmente com o seu processo de
radicalização, articulação e generalização. As formas de auto-organização
gestadas pelo proletariado são diferentes das organizações burocráticas que
aglutinam indivíduos proletários sob domínio da burocracia (partidos políticos)
ou das que transformam alguns destes em burocratas para dirigir os demais
(sindicatos). Esse é o caso de muitos comitês de greve. Esses surgem das
necessidades da greve, da luta, meio de satisfazer outras necessidades (as
reivindicações salariais, entre outras). Os comitês de greve não são
organizações autogeridas, pois seu objetivo está determinado alhures, mas são
um esboço de autogestão, no sentido de que eles, como delegados da categoria ou
empresa, coordenam o movimento grevista. Se estes comitês, como já ocorreu
muitas vezes em diversas experiências históricas, se transformam em conselhos
de fábrica, aumentam sua autonomia e capacidade de luta, passam a ter mais
responsabilidade além da greve, entre outros aspectos que a colocam com um
esboço mais amplo de autogestão. Se além dessa forma organizativa há também um
objetivo revolucionário decidido livremente pelos trabalhadores, é possível
dizer que já se trata de autogestão das lutas. Quando a greve se torna de
ocupação ativa e os conselhos de fábrica passam a gerir por conta própria as
fábricas, tal esboço se torna ainda mais amplo, pois significa que a produção
começa a ser controlada pelos trabalhadores. É possível dizer que se trata de
uma autogestão parcial da produção[1].
Se tais conselhos de fábrica se articulam com os de outras fábricas e passam a
não somente gerir a produção em sua fábrica, mas articular com outros conselhos
que fazem isto em outras empresas e também atuar sobre o processo de
distribuição do que é produzido e outros processos relacionados, há uma
ampliação ainda maior da autogestão. Temos aqui uma autogestão parcial da
sociedade, que só se torna total com a abolição completa do capital e do
Estado.
Esse processo, tal como aqui apresentado, emerge do processo
de produção para a sociedade em geral. No entanto, a luta de classes e a
autogestão devem ocorrer no conjunto das relações sociais. Aqui entra a questão
das demais classes exploradas, do processo de formação (cultural, educacional),
da luta de classes na sociedade civil (onde entra também a questão dos grupos
revolucionários e dos movimentos sociais). A autogestão generalizada tem como
elemento fundamental a luta de classes na produção, a transformação do modo de
produção capitalista em modo de produção comunista ou autogerido. A
constituição de novas relações de produção não podem se concretizar sem a
produção de novas relações sociais nas outras instâncias da sociedade, o que
Marx denominou “superestrutura” e nos modos de produção não-capitalistas. A
rearticulação das relações entre cidade e campo, a abolição do aparato estatal,
a emergência de um novo modo de educação, entre diversos outros elementos, vão
devem ser constituídos em consonância com a transformação das relações de
produção. Em alguns casos, como na rebelião estudantil de maio de 1968, pode
até anteceder, sob a forma de luta, tal transformação ou servir de incentivo
para ela.
É justamente no espaço da sociedade civil que o democratismo
mais se confunde com a autogestão social. Isto ocorre pela hegemonia burguesa,
composição social muitas vezes policlassista, entre diversas outras
determinações. É nesse momento, portanto, que devemos distinguir claramente
democratismo e autogestão. O democratismo acaba se tornando uma espécie de
doutrina que possui dois princípios fundamentais: a “decisão democrática” e o
igualitarismo abstrato e ilusório. A decisão democrática é uma autoilusão que
prega a necessidade da decisão da maioria (em alguns casos até o “consenso”)
aplicada em qualquer situação, grupo, processo, indistintamente. Aqui se mostra
toda a fragilidade de todas as concepções não-marxistas que querem supostamente
uma transformação social. As relações sociais concretas, reais, as condições
sob as quais estas relações se desenvolvem, as relações estabelecidas com
outras situações, grupos, processos, são desconsiderados.
A base de tal desconsideração sobre as condições sociais
reais encontra-se no segundo princípio, o igualitarismo abstrato e ilusório.
Este considera que todos devem participar da mesma forma partindo do
pressuposto que todos são iguais e possuem a mesma capacidade de decisão. Sem
dúvida, aqui temos novas abstrações e afastamento das relações sociais
concretas: as diferenças de classe, sexo, raça, cultura em geral, formação
intelectual, grau de influência de ideologias e concepções burguesas, condições
de vida, entre inúmeras outras são simplesmente desconsideradas. A igualdade
formal entra em contradição com a desigualdade real. Assim, não será difícil
ver alguém exigir a participação igualitária das mulheres em determinado
coletivo político, apesar das que estão no mesmo, efetivamente, não
participarem ou então que um indivíduo proletário sem uma compreensão teórica
ou mais ampla tenha suas intervenções visivelmente equivocadas recebam o mesmo
tipo de consideração que outras mais adequadas e com perceptível entendimento
teórico da problemática em questão.
Diante do democratismo, que é uma derivação doutrinária (e
que gera ideologias quando sistematizada) da democracia (burguesa), resta a
outra posição burguesa: tendo em vista a desigualdade real, então não é
possível uma igualdade formal. O democratismo se apega à igualdade formal e exige
sua concretização real ou faz de conta que é praticada. O elitismo burguês (do
qual o burocratismo e o leninismo é uma variante) reconhece a desigualdade real
e a transforma em desigualdade formal, instituindo a relação entre dirigentes e
dirigidos, hierarquias, etc. No primeiro caso, o processo decisório é realizado
por todos indistintamente e no segundo caso apenas pela cúpula dirigente.
Na sociedade autogerida não existe nem desigualdade real nem
formal. O processo decisório é fundado na autogestão generalizada, o que
significa que o processo de decisão coletiva ocorre tanto a nível das questões
sociais mais amplas e gerais, quanto a nível das atividades mais específicas e
realizadas por pequenos grupos, empresas, etc. No entanto, essa é uma sociedade
do futuro e que pressupõe que o Estado, o capital, o mercado, o dinheiro, a
exploração, a dominação foram abolidos e um novo modo de educação e formação em
geral, novas relações sociais, novos indivíduos constituídos a partir delas,
existirão, o que permite a realização plena da autogestão.
Na sociedade atual, a autogestão é incongruente com as
relações sociais concretas, tanto as relações de produção quanto o conjunto das
demais relações sociais. O democratismo parte de um voluntarismo que abstrai
tal contexto social e histórico. É o mesmo que pensar na possibilidade de que
as ideologias teológicas da sociedade feudal pudessem ser dominantes na
sociedade capitalista. As organizações revolucionárias, as lutas sociais, entre
outros aspectos da sociedade civil, ocorrem no interior do capitalismo e
possuem uma desigualdade real em sua base. Os princípios de uma organização
autogerida não se concretizam sob forma perfeita e sim sob forma parcial, tal
como no caso das organizações dos trabalhadores e o grau em que se aproxima do
ideal depende dos indivíduos que compõem o coletivo, de seu engajamento, de
suas condições de vida, do contexto histórico (em momentos de acirramento das
lutas de classes há a tendência em haver maior engajamento, por exemplo), da
formação intelectual e clareza programática, entre outras determinações. Um
primeiro ponto a perceber é que tais organizações podem ser autogestionárias,
ou seja, possuir a autogestão (a constituição da sociedade comunista
autogovernada) como finalidade e ser, internamente, um esboço de autogestão, ou
seja, ser uma autogestão parcial, pois dificilmente conseguirá ser total e
completa, mesmo porque sua própria existência é produto da sociedade
capitalista. A razão de ser da existência de grupos revolucionários é a necessidade
da transformação social e ela ocorre através de um conjunto de atividades que
não são a vida em sua totalidade.
A importância da cultura e da produção intelectual (teórica,
artística, etc.), dos grupos revolucionários, dos movimentos sociais radicais,
entre outros exemplos de formas de manifestação da luta de classes na sociedade
civil reside tanto no impacto que ela tem na luta de classes na produção quanto
na constituição de um esboço de autogestão em outras relações sociais que
também farão parte da nova sociedade. A autogestão da produção é acompanhada
com a autogestão do processo de formação, o que significa que um novo modo de
produção gera um novo modo de educação, para ficar em apenas um exemplo. Uma
sociedade autogerida pressupõe um nível de consciência extremamente elevado[2] do
conjunto da população para realizar o conjunto de atividades (desde as relações
de produção até a produção intelectual). Da mesma forma, tanto os trabalhadores
no processo de produção e luta, precisam ampliar sua consciência no que se
refere aos aspectos e relações existentes em sua atividade laborativa e nos
confrontos sociais, quanto os indivíduos revolucionários necessitam de um saber
sobre as questões políticas e sociais gerais, além da necessidade de refletir sobre
a própria atividade revolucionária.
Tendo em vista estes aspectos, é necessário entender que
numa organização revolucionária ou outro lugar de atuação política, não é
possível abstrair a desigualdade real. Não se deve nem agir como o
democratismo, fazer de conta que não existe ou que o mero voluntarismo pode
resolver facilmente, nem como o leninismo que o reconhece e reforça. Reconhecer
a desigualdade real é fundamental e lutar contra suas bases (tanto na luta por
uma nova sociedade quanto na luta para diminuir o grau de diferença, sempre no
sentido de melhorar e não de rebaixar, ou seja, nivelar pelo alto e não por
baixo) ao lado de saber conviver e trabalhar com isso. Não é possível, por
exemplo, tratar um indivíduo com todo um histórico de luta, engajamento,
compromisso e ética da mesma forma que um recém chegado ou um militante
esporádico, sob o pretexto do “princípio democrático”. No aspecto formal e
organizacional há um tratamento igual e também nos processos concretos, mas o
peso da ação e concepção acaba sendo distinto, pois revela uma desigualdade
real, e no caso de uma disputa interna tal desigualdade deve ser considerada,
pois ela é relevante para as tomadas de posição. Isso também ocorre quando é
necessário redigir um manifesto ou qualquer outro texto, que não pode ser
produzido por todos. O coletivo pode até dar as diretrizes gerais do documento,
mas não sua redação concreta. E se existe alguém analfabeto no seu interior, é
obvio que ele não será o indivíduo encarregado disso. Esse é um exemplo
extremo, mas que ajuda a entender que em certos campos, que exige saber
técnico, etc., então a desigualdade deve ser reconhecida e no processo de
escolha deve ser fundamental para a tomada de decisão. O que deve ocorrer, para
manter o caráter autogestionário, é que – no caso desse exemplo, mas que vale
para todos os demais – a decisão coletiva e as diretrizes gerais sejam do todo
(com suas imperfeições provocadas pelo fato de ocorrer no capitalismo, tal como
baixa ou não participação de muitos, pouca reflexão de outros, etc.) e que o
documento seja posteriormente aprovado (ou não), modificado, etc., pelo
conjunto dos militantes[3].
Ao lado disso e lutando contra esse processo, é necessário buscar minimizar as
desigualdades reais, o que é possível em alguns casos, mas não em outros (por
exemplo, pertencimento de classe: um indivíduo lumpemproletário não poderá
mudar de classe por ação do coletivo, pois isso não está ao seu alcance). Esse
é o caso da formação intelectual, inclusive devido sua importância para a
própria organização e para a constituição da sociedade autogerida. Atuar nesse
processo é equivalente a incentivar a autoformação individual, socializar
informações, etc., ao lado de atividades mais estruturadas, como cursos de
formação, grupos de estudos, etc.
O democratismo é uma forma sem conteúdo e algo que se coloca
como seu próprio objetivo. A concepção autogestionária entende a autogestão
como meio e fim. A autogestão não é algo cujo objetivo é tão-somente se
concretizar na organização revolucionária e sim sua generalização na sociedade,
o que pressupõe luta de classes e ação revolucionária, que pode se reproduzir
internamente e ganhar processos de conflitos e outros problemas. A autogestão “imperfeita”
é algo alheia à vontade do coletivo e apenas os hipócritas diriam que ela é “perfeita”
em algum caso concreto. No entanto, o objetivo que é a autogestão generalizada,
a revolução proletária e emancipação humana, é mais importante do que a
organização e por isso, se ela em nome do democratismo deixa de lado o objetivo
final e fundamental, então deve ser combatida e superada (no caso individual
pode significar afastamento e engajamento em outras iniciativas). Da mesma
forma que conselhos de fábrica que se corrompem ou realizam adesão ao
reformismo, os coletivos que caminham nesse sentido também devem ser
combatidos.
O projeto autogestionário pressupõe um conteúdo
revolucionário e não se pode sacrificar o conteúdo por causa da forma. A
autogestão imperfeita interna não é nem democratismo nem burocratismo e nem
objetivo em si mesmo, é meio para o objetivo final que é a autogestão perfeita
e completa, o que significa transformação social do conjunto das relações
sociais no sentido de constituir uma sociedade autogerida. Os indivíduos e
grupos que não entenderam isso não são autenticamente revolucionários, por mais
que pensem ou digam isso. A ignorância e a autoilusão nunca foram
revolucionárias. A teoria é fundamental para qualquer projeto de transformação
radical da sociedade. Ela é um esboço de tal transformação e é graças a ela que
se pode questionar e superar o democratismo e recuperar o verdadeiro
significado da autogestão.
[1]
Esse caráter parcial deriva do fato de que a finalidade da produção e diversos
outros aspectos (matérias-primas, distribuição da produção, etc.) não é
decidido pelo conselho de fábrica e nem pela classe proletária em sua
totalidade.
[2] E
por isso nada mais antimarxista e reacionário do que o anti-intelectualismo.
Querer contribuir com a formação de uma nova sociedade, fundada na autogestão
ou igualdade, anarquia, etc., recusando o aprofundamento do saber (em suas
múltiplas manifestações, tais como a técnica, teórica, etc.) é sinal de no
fundo nada entende do processo de transformação e constituição do comunismo. Um
bando de ignorantes pouco conhecedores dos processos técnicos de produção, da
organização social, das necessidades sociais em geral, só poderiam gerar uma
idiocracia, mais ou menos como foi tematizado em filme com este título.
[3]
Nesse caso o indivíduo que redige o documento é um executante da decisão
coletiva e não um dirigente, como nas organizações leninistas e burocráticas em
geral. É importante ressaltar que os critérios de escolhas devem se basear na
capacidade técnica, na responsabilidade, na disposição e disponibilidade. Da
mesma forma, é necessário discutir internamente que as pessoas não deveriam se
dispor a realizar atividades que não possuem o necessário acúmulo para fazê-lo
(não basta apenas a vontade, a não ser que essa se concretize com o processo de
superação, o que para ocorrer necessita, no mínimo, de um certo tempo). É o
mesmo que alguém que nada entende de informática se colocar como responsável
pela execução de uma atividade que requer um saber sobre ela.
Artigo publicado originalmente em Revista Marxismo e Autogestão, Vol. 01, num. 02, jul./dez. de 2014.