terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Revista Marxismo e Autogestão, num. 03, online

v. 2, n. 3 (2015)

Marxismo e Autogestão 03


Sumário

Marxismo Autogestionário

Carta Aberta aos Intelectuais Texto Completo
Rudolf Berg 5-8
O Materialismo Histórico-Dialético Texto Completo
Lucas Maia 9-15

Autogestão e Formação

Autogestão Pedagógica ou Pedagogia Autogestionária? Texto Completo
Nildo Viana 16-30
René Lourau Pedagogo Texto Completo
Georges Lapassade 31-36

Teorias da Autogestão

A Organização dos Conselhos Operários Texto Completo
Anton Pannekoek 37-46

Experiências Autogestionárias

A Comuna de Paris Texto Completo
Karl Marx 47-62
A Revolta de Kronstadt Texto Completo
Anton Ciliga 63-71

Marx, Marxismo e Marxistas

Marx e o Estado Texto Completo
David Adam 72-95
Anton Pannekoek: Uma Redefinição do Marxismo Texto Completo
Cajo Brendel 96-104

Crítica do Pseudomarxismo

Trotsky e a Revolução Permanente Texto Completo
Karl Korsch 105-110
Introdução à Crítica da Ideologia Gramsciana Texto Completo
Nildo Viana 111-155
Revolução Russa e Contrarrevolução Bolchevique Texto Completo
Leonel Luiz dos Santos 156-175
Contra “O Estado e a revolução”, de Lênin Texto Completo
Chris Wright 176-192

Análise e Crítica Marxista

Carta sobre a Libertação Animal Texto Completo
Gilles Dauvé (Jean Barrot) 193-210

Capitalismo e Luta de Classes

Movimentos Sociais, Futuro e Utopia Texto Completo
Patrick Berger 211-227
Sindicalismo: Da Expectativa Revolucionária à Crítica da Conformação Burocrática Texto Completo
José Santana da Silva 228-255
Sobre a Intervenção Revolucionária Texto Completo
Karl Jensen 256-264
Burocracia: Forma Organizacional e Classe Social Texto Completo
Nildo Viana 265-285

Resenhas

Universo Psíquico e Reprodução do Capital Texto Completo
Renato Dias 286-288

domingo, 6 de setembro de 2015

ANT: auto-organização dos trabalhadores autogestionários

A ANT - Associação Nacional dos Trabalhadores, de tendência autogestionária, acaba de ser fundada no Brasil. A ANT se coloca como não sendo um sindicato, partido ou organização burocrática, não sendo uma entidade supostamente "representativa" dos trabalhadores. Ela se coloca como sendo a auto-organização dos trabalhadores revolucionários e autogestionários que busca expressar os interesses do proletariado revolucionário e avançar na luta pela hegemonia proletária.

Veja mais em: http://ant-luta.blogspot.com.br/

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Artigos marxistas autogestionários em inglês

Artigos marxistas autogestionários em espanhol

Autogestão: O Signo e o Ser - Nildo Viana



AUTOGESTÃO: O SIGNO E O SER

Nildo Viana*

A palavra autogestão possui inúmeros significados. Isso é relativamente comum. Raramente existe consenso em torno do significado das palavras, especialmente quando se trata de conceitos ou construtos[1], ou seja, termos técnicos, científicos, filosóficos, teóricos. Não discutiremos aqui o problema das concepções a respeito dessa questão, mas tão-somente apresentaremos uma concepção a respeito, para, assim, esclarecer a questão conceitual do termo autogestão.

A luta de classes em torno do signo

A palavra autogestão pode significar coisas distintas (GUILLERM e BOURDEUT, 1976; VIANA, 2008a). Essa discussão recorda Foucault e seu livro “As Palavras e as Coisas” (1987), ou o livro de Cabral (1983) O Proletariado: O Nome a Coisa. Temos, em ambos os casos, deixando de lado as diferenças de concepções e significados, uma oposição: por um lado, a palavra ou o nome e, por outro, a coisa. Nas sociedades de classes, marcadas pela divisão e pelo antagonismo, há não só distintas percepções da realidade derivadas da posição dos indivíduos na divisão social do trabalho, mas também oposição e muitas vezes antagonismo.

Marx explicou isso em sua obra A Ideologia Alemã (MARX e ENGELS, 1992): a divisão social do trabalho faz com que eu tenha um modo de vida distinto do de outras pessoas, que eu tenha relações sociais diferentes, que eu perceba o mundo a partir das minhas atividades, relações (com os demais seres humanos e com a natureza). Uma pessoa que só enxerga preto e branco, não terá noção das cores e nem imaginação para pensá-las, a não ser num nível muito mais abstrato (tal como nós, que podemos imaginar abstratamente que podem existir outras cores além das que conhecemos, mas não podemos imaginá-las diretamente), alguém que vive numa sociedade escravista na posição de escravo, não entenderá as relações estabelecidas entre os indivíduos da classe senhorial ou as perceberá de forma radicalmente distinta da que eles mesmos percebem.

Contudo, há um outro elemento nesse processo todo. A divisão social do trabalho e o modo de vida diferenciado que ela cria, gera não só uma limitação na percepção da totalidade que é a sociedade e dos outros modos de vida, mas também promove a constituição de valores, sentimentos, interesses, processos inconscientes, etc. Esses aspectos influenciam na consciência dos indivíduos, bem como essa consciência também exerce influência sobre eles. A divisão social do trabalho mais ampla, que constitui as classes sociais, promove uma diferenciação intelectual, valorativa, sentimental, etc. Isto, obviamente, vai interferir no processo de constituição e significação das palavras. Sem dúvida, as ideias dominantes são as ideias da classe dominante e por isso ela vai impor uma determinada “nomeação” do mundo. Da mesma forma, quanto mais complexa é a divisão social do trabalho em uma determinada sociedade, mais divisões e subdivisões existirão, inclusive no interior das classes privilegiadas.

Nesse contexto, é interessante retomar a análise de Mikhail Bakhtin e sua ideia de que existe uma luta de classes em torno do signo. Sem dúvida, o seu universo linguístico é bem distinto do nosso, o que apenas reproduz outras diferenças de concepção, a começar pelo significado que atribui ao termo “ideologia”, para exemplificar com mais uma distinção entre signo e ser, e por isso não compartilhamos a totalidade de sua abordagem, mas apenas esse elemento mais específico (e mais alguns, que aqui, para nossos propósitos, não vem ao caso). Segundo Bakhtin: “o ser, refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se refrata. O que é que determina essa refração do ser no signo ideológico? O confronto de interesses sociais nos limites de uma só e mesma comunidade semiótica, ou seja: a luta de classes” (1990, p. 46).

Pois bem, vamos reter desse autor apenas essa ideia: existe uma luta de classes em torno do signo. Mas antes disso, há também uma luta de classes em torno das palavras, mesmo que haja consenso sobre o seu significado ou pelo menos aproximação. As palavras indesejáveis, portadoras de significados que remetem a seres indesejados, considerados inexistentes, falsos ou contrários aos interesses, valores e concepções da classe dominante (ou outra classe, grupo social, etc.) podem ser censuradas, impedidas de vir à tona. Elas são censuradas, se tornam “tabus”, são proibidas, recriminadas, marginalizadas, ignoradas. As palavras censuradas, proibidas, recriminadas, omitidas, apontam para o indesejável, o falso, o inexistente, e se relacionam com o pecaminoso, o maléfico, o que deve ser negado.

Isso pode aparecer de forma mais simples e na vida cotidiana e já está na socialização das crianças, com a censura ao “palavrão” e este pode ter conotação sexual, religiosa, etc. Mas não apenas isso é censurado. Para quem viveu no período do regime militar no Brasil, a palavra “comunismo” era censurada/recriminada e tinha que ser proferida de forma mais baixa e cautelosa. Esse processo de censura e recriminação[2] não atinge somente as palavras, mas esse é o caso aqui analisado. Ele pode ser exemplificado tal como no filme A Vila (Shyamalan, EUA, 2004), na qual os seres imaginários que aterrorizam os moradores do vilarejo são “aqueles os quais não mencionamos” ou “podemos mencionar” (e o vermelho, uma cor, também é censurada). Aqueles que não podemos mencionar são os monstros que nos perseguem, reprimem, e, portanto, é aquilo que não desejamos. Obviamente que “o que não desejamos” é algo produzido socialmente e de acordo com determinados interesses, tal como no filme é uma produção fictícia dos anciões.

Contudo, nem sempre é possível censurar e reprimir as palavras, pois há indivíduos e grupos que insistem em proferi-las e em regimes supostamente democráticos não podem ser silenciados sem uma boa justificativa[3]. É nesse momento que emerge a luta de classes em torno dos signos. Embora no primeiro caso ela já exista, no segundo caso ela é exclusivamente isto. Se durante a ditadura militar no Brasil a palavra comunismo era censurada/recriminada, ela era também ressignificada para que esse processo pudesse ocorrer e foi nesse contexto que surgiu algumas imagens equivocadas atribuídas a este termo, geralmente se referindo ao capitalismo de Estado da antiga União Soviética (devido à guerra fria e também à confusão política em torno do termo, aparentemente referente ao pensamento de Marx), e as ideias, desde as mais absurdas, tal com a de que “os comunistas comem criancinhas”[4] ou a de que as pessoas recebiam uma ração predeterminada, eram uma atribuição de significado ao termo que assustava e justificava a censura e recriminação.


No caso dos regimes democrático-burgueses, o que ocorre é, prioritariamente, uma luta de classes em torno dos signos. As palavras comunismo, revolução, socialismo, solidariedade, entre diversas outras, são ressignificadas de acordo com os interesses de classe, as concepções ideológicas, etc. Este é o caso, por exemplo, daqueles que afirmaram que houve uma revolução em 1964 no Brasil. A palavra “revolução” aqui tem o significado antagônico ao que tem, por exemplo, nas concepções marxista e anarquista. Mas os próprios termos “marxismo” e “anarquismo” são ressignificados (nesse caso, deformados). O marxismo assume inúmeros significados diferentes de seu sentido original e o mesmo ocorre com o anarquismo. Assim, se revolução se transforma em mera mudança de governo, ou em tomada do poder estatal ou, ainda, transformação radical do conjunto das relações sociais, temos três concepções distintas. Num caso, a revolução, entendida como “mudança de governo”, está próxima da concepção conservadora que busca esvaziar a radicalidade do termo e banalizá-lo, retirando-lhe a eficácia política e simbólica. Noutro caso, a revolução como tomada do poder estatal, apenas a reduz a uma mera insurreição armada que toma pela força o aparato burocrático do Estado. Na terceira concepção, a marxista, significa uma transformação radical do conjunto das relações sociais, ou seja, das relações de produção e das demais relações sociais, incluindo a abolição do aparato estatal. A revolução, assim, pode significar uma mudança de governo, de forma estatal ou sua abolição[5].

A luta de classes em torno do ser que o signo expressa

Sintetizando a discussão até aqui: há uma luta de classes em torno do signo. O mesmo vale para a palavra autogestão. Contudo, antes de passar para este caso específico, é necessário tratar do outro aspecto, o ser. Se as palavras expressam os seres, então é preciso reconhecer que há uma luta também no que se refere ao ser. A luta de classes em torno dos signos apenas expressa a luta de classes em torno dos seres, da realidade concreta. A relação entre signo e ser, ou entre “palavras” e “coisas”[6] é bastante complexa. Alguns defendem que as palavras são arbitrárias, meras criações. Para outros, elas são exatamente iguais ao real, ao ser.

A realidade contradiz as duas concepções: se as palavras expressam o ser, um mesmo ser teria apenas uma palavra para expressá-lo ou apenas um significado para cada palavra; se as palavras são arbitrárias ou meras convenções, então ou seria um mundo paralelo imaginário sem realidade efetiva ou seria apenas uma forma de manipulação do real. Como sabemos, existem várias palavras para dizer uma mesma coisa, assim como uma mesma palavra possui vários significados. Se eu digo cachorro ou cão, estou me referindo ao mesmo animal, são sinônimos e a existência destes é mais do que conhecida. E se eu digo “cão”, posso estar me referindo ao animal ou ao “diabo”. Estes são exemplos simples e, no fundo, tanto faz dizer cão ou cachorro, pois eles remetem ao mesmo animal e tanto faz se uso a palavra cão com significado literal ou figurado. Isso por si só não anula a ideia de equivalência entre palavra e coisa, ou entre signo e palavra.

Claro que aqui estamos no nível da linguagem simples, pois se passarmos para a linguagem complexa, isso fica muito mais complicado. Se eu digo “capitalismo”, estou me referindo a um determinado modo de produção ou sociedade (o modo de produção capitalista é parte e determinação fundamental da sociedade capitalista), mas também posso dizer “modernidade” ou sociedade moderna, ou mesmo como Marx colocou, modo de produção moderno ou, ainda, burguês (MARX e ENGELS, 1988). Se a palavra capitalismo significa o ser que é a sociedade capitalista e modernidade também, então não há problema. Contudo, no plano da linguagem complexa, há outro problema, que é o significado. Qual é o significado da palavra “capitalismo”? E “modernidade”? Em Marx é possível entender que existe uma equivalência entre signo e ser, mas se entendermos o capitalismo no sentido weberiano ou qualquer outro? A palavra pode ser a mesma, mas o ser é outro. Enquanto Marx pensa na totalidade das relações sociais constituídas a partir do modo de produção capitalista, em Weber (1987) é apenas um fragmento dessa realidade e é por isso que ele pode falar em diversos “tipos de capitalismos” e encontrar capitalismo na sociedade escravista. A construção weberiana é arbitrária, e ele busca legitimar isso ao defender a elaboração de “tipos ideais”.

Logo, para um relativista, a questão é apenas que cada um define essa palavra diferentemente. No entanto, aqui temos uma estratégia ideológica que é uma outra forma de fazer desaparecer o ser, o real. É possível fazer isso através da censura e recriminação de palavras, mas também através da ressignificação ideológica, ou seja, deformação do seu significado. Usa-se a palavra capitalismo, mas ela já significa outra coisa, que não é o seu ser. A substituição de significado é, ao mesmo tempo, a substituição do ser, do real. E essa substituição do ser significa que um o verdadeiro é substituído pelo falso. A ideologia cumpre esse papel. Isso ocorreu com capitalismo, comunismo, marxismo, autogestão e inúmeras outras palavras e signos. No entanto, essa deformação do significado pode ocorrer tanto através da maculação[7] quanto da ornamentação, ou seja, do embelezamento ou eufemismos visando tornar mais aceitáveis ou legítimas formas de dominação e exploração. Um exemplo desse último é a palavra “democracia”, utilizada indiscriminadamente para justificar e legitimar práticas até mesmo ditatoriais, como no caso de chamar os países capitalistas estatais do Leste Europeu como “democracias populares”, mas também chamar o regime estadunidense de “mundo livre”, entre diversos outros exemplos.

A luta de classes em torno do significado da autogestão

O caso do termo “autogestão” é apenas um entre milhares. Ao invés do procedimento ideológico, vamos partir do ser que a palavra autogestão significa para depois chegar ao significado da palavra. A origem do ser antecede a origem da palavra e seu significado autêntico. O significado da palavra autogestão antecede sua existência e suas origens remontam o chamado socialismo utópico[8]. Com a emergência da sociedade capitalista e todos os seus problemas sociais, emerge também a proposta de uma nova sociedade. Sob formas muitas vezes fantasiosas e detalhistas, sem a análise de suas possibilidades de instauração, quem poderia ser o agente principal desse processo e como seria a passagem de uma forma de sociedade (capitalista) para outra, ou então formas pouco realistas (educação, razão, cooperativas), os socialistas utópicos antecederam a ideia de constituição de uma sociedade marcada pela igualdade e liberdade. Devido a estes limites, são utopias abstratas, que, no entanto, expressam determinada fase do movimento operário, o período de seu surgimento e expansão, sendo adequadas para este momento, embora conservadoras num momento posterior, devido ao avanço das lutas de classes.

Proudhon aprofundou um pouco esse processo e, posteriormente, Bakunin desenvolveu suas concepções retirando algumas ambiguidades e aprofundando a proposta federalista e uso do termo “anarquia” e Marx constituiu a ideia da nova sociedade a partir das noções de associação e comunismo. Pannekoek, Rühle e os demais comunistas conselhistas mantiveram a palavra “comunista” ou “sistema de conselhos”. A concepção de Pannekoek (1977) sobre os conselhos operários realiza a expressão do ser que é o comunismo tal como Marx pensou, apenas fornecendo maior concreticidade devido às novas experiências históricas que fizeram emergir a nova forma organizacional da luta proletária. Até esse momento, a palavra autogestão não existia, apenas o significado do ser que ela expressava e outras palavras existiam buscando realizar tal expressão: federalismo, anarquia, comunismo, associação, socialismo, etc. Posteriormente, o ser da autogestão reapareceria com outros nomes, tal como “sistema de conselhos” (alguns comunistas conselhistas), por exemplo.

Com o passar do tempo, emerge a palavra autogestão. Ela surge sob duas formas e em ambos os casos abre uma oposição ao “comunismo”, cujo significado foi deformado pelo bolchevismo. Assim, podemos falar de uma gênese iugoslava da palavra autogestão e uma gênese francesa. Na Iugoslávia, a palavra autogestão, em servocroata samoupravlje, união de samo (auto) e upravlje (gestão) (ARVON, 1982; GUILLERM e BOURDEUT, 1976) apresenta uma tentativa de avançar uma alternativa ao regime da URSS (era um regime independente e isso tem a ver com o fato de ter sido o único país do Leste Europeu a ter se livrado do nazismo por conta própria ao invés dos demais, libertados pelo país de Stálin), o que ficou conhecido como “titoísmo”, nome derivado do líder iugoslavo, Josip Broz Tito. O regime iugoslavo se denominava “autogestionário” e se organizava através da estatização dos meios de produção, comandada pela Liga dos Comunistas da Iugoslávia (nome do Partido Comunista neste país) com a existência de cogestão nas fábricas e pequenas propriedades privadas. O termo autogestão seria reduzido ao processo de “gestão de empresas”, tal como será entendido posteriormente na França. A suposta “autogestão” nas fábricas era o que em qualquer outro lugar se chamaria de “cogestão”[9] ou “participação”, pois os proletários apenas geriam os processos produtivos, de forma limitada, sendo que “o que” produzir, “quando” e “para quê” eram definidos externamente, pela burocracia estatal, restando aos trabalhadores uma maior influência apenas no “como” produzir.

Aqui se revela a ornamentação, mais um aspecto da luta de classes em torno dos signos: a tentativa de inovar e embelezar algo que, na essência, não difere de outros processos sociais e históricos. Assim como a antiga União Soviética se dizia “socialista” ou “comunista”, a Iugoslávia se dizia “autogestionária”, um nome novo que na verdade não correspondia a etimologia da palavra, já que o que existia era uma heterogestão com participação dos trabalhadores em aspectos do processo de trabalho e organização da indústria (enquanto unidade de produção). Da mesma forma, o Partido Nazista se dizia “socialista”, bem com os milhares de partidos supostamente “socialistas” e “comunistas”[10].

A gênese francesa se encontra na própria experiência iugoslava, sendo que a palavra autogestion é uma tradução literal de samoupravlje. Segundo Arvon:

O termo autogestão foi introduzido na França no final dos anos sessenta para designar a experiência iugoslava a partir de 1950 com vistas a instaurar um socialismo antiburocrático e descentralizado. A escolha do termo não parece, contudo, muito acertada. Como a noção de “gestão” está carregada de uma racionalidade puramente econômica, a de autogestão se encontra a priori limitada à “gestão de uma empresa”, de uma coletividade, pelo pessoal” (definição do dicionário Robert) (ARVON, 1982, p. 7).

Essa importação da palavra, portanto, está em dissonância com o seu significado autêntico. Mas a relação entre o ser (comunismo, anarquia, livre associação dos produtores, etc.) com o signo (autogestão) não existia nem no caso iugoslavo e nem em sua primeira aparição no caso francês. Isso, no entanto, irá mudar com a emergência do maio de 1968, que é quando a palavra ganha seu significado autêntico:

O brusco surgimento da noção de autogestão na França é habitualmente atribuído ao espetáculo inesperado de uma Iugoslávia que, surgida subitamente do dócil pelotão dos países satélites [da URSS – NV], se isola desde 1950 empenhando-se com temeridade em um processo autogestionário. Contudo, tal hipótese não contém mais que uma parte da verdade e, além disso, se vê alterada pela simples cronologia: dado que a moda autogestionária data de princípios dos anos 1970, seria necessário admitir que o conhecimento de uma experiência socialista nova realizada por um país da Europa tenha demorado cerca de vinte anos para aparecer na França e para suscitar ali derivação (ARVON, 1982, p. 38).

Nesse sentido, a gênese francesa da palavra lhe atribui um significado novo. Esse “significado novo” significa, no fundo, unir o signo e o ser da autogestão, união inexistente anteriormente, pois o ser, o projeto utópico de uma nova sociedade fundada na auto-organização geral da sociedade, já existia, bem como uma palavra que expressa isso (entre outras, como anarquia, comunismo, sistema de conselhos, autogoverno dos produtores, indivíduos livremente associados, etc.) emerge posteriormente, mas significando algo mais restrito (cogestão de empresas) e é num determinado contexto da luta de classes que o ser e o signo se unificam:

Foi muito mais a explosão de todas as estruturas autoritárias em maio de 1968 o que fez nascer na França a curiosidade por um processo fundamentalmente antiautoritário empreendido em outro lugar e do qual haviam bastado estudos quase anatômicos até antes de que viesse lugar sua atualização brutal. A confusa aspiração de maio de 1968 em substituir um centralismo opressivo, de origem jacobina e uma burocracia todo-poderosa, própria do modelo socialista tradicional, por organismos políticos e econômicos descentralizados no qual seria lícito a cada um assumir de novo sua existência total, tomar conta do seu próprio destino, em uma palavra, “significar” uma vida que se fez absurda, vai em busca de uma doutrina global que pode traduzi-la em termos claros; e a esse respeito a autogestão se presta maravilhosamente (ARVON, 1982, p. 38).

Na França, antes da eclosão da luta estudantil e operária, a Internacional Situacionista já apontava para uma concepção autogestionária nos escritos de Debord e outros, sendo inclusive uma de suas fontes inspiradoras[11]. Depois do Maio de 1968, a definição de autogestão passou a ser predominantemente esta durante algum tempo. Alguns, autores, com ambiguidades, passaram a usar o termo, como Henri Lefebvre, George Gurvitch e Roger Garaudy. Esse é o mesmo caso da Central Sindical CFDT – Cofederação Francesa Democrática do Trabalho, que, apesar de se inspirar e ser influenciada pelo maio de 1968, limita a autogestão à gestão de empresas. Contudo, sem deformar a concepção de autogestão que emergiu como resultado da luta de classes, as obras de Alain Guillerm, Yvon Bourdet, entre outros, mantiveram a essência revolucionária e proletária deste conceito. Nesses autores e em outros, a autogestão significa uma sociedade nova, fundada na autogestão coletiva generalizada das relações de produção e relações sociais (GUILLLERM e BOURDET, 1976; TRAGTEBERG, 1986; VIANA, 2008b).

Assim, a história posterior do termo “autogestão” não foi definitivamente resolvida, pois isso depende da luta de classes e da perspectiva de classe de quem o usa e o define. Os debates prosseguiram com as críticas dos bolchevistas e outros, por um lado, e, por outro, com as deformações e adaptações às necessidades do capital e das classes privilegiadas. É graças a essas apropriações do termo “autogestão” pelas concepções reformistas que faz Claude Berger, em seu excelente livro de comparação da concepção de comunismo em Marx e Lênin, negar o termo “autogestão” e tentar resgatar um termo mais abstrato e menos exato utilizado amplamente pelo autor de O Capital: associação (BERGER, 1977). No entanto, essa discussão remete ao problema dos signos e os motivos para utilizá-los. Sem dúvida, seria possível abandonar o uso do termo autogestão e em seu lugar usar associação, autogoverno, ou qualquer outro, da mesma forma que os termos “socialismo” e “comunismo” foram relativamente abandonados por aqueles filiados ao marxismo autêntico.

Além dos franceses citados que mantiveram o significado autêntico da autogestão, há também outros que mantiveram essa concepção, tais como Maurício Tragtenberg (1986), no Brasil, em seu livro introdutório que oferece uma concepção autogestionária em sua essência, bem como outros. Assim, o motivo de manter o termo autogestão como significando a sociedade comunista, anarquia, sistema de conselhos, etc., se deve ao próprio processo de luta de classes.

Os termos “socialismo” e “comunismo” foram deformados totalmente, mas não só isso, pois tal deformação (realizada pelos socialdemocratas, bolchevistas, ideólogos burgueses, etc.) se tornou amplamente hegemônica, tendo uma tradição, história, produção intelectual cujo peso torna quase impossível disputar-lhe o significado. Da mesma forma, para as classes trabalhadoras (proletariado, campesinato, etc.) a equivalência desses termos com os partidos e países supostamente “socialistas” e “comunistas” é algo evidente e hegemônico, sendo que seria um luta inglória tentar desfazer isso atualmente.

Da mesma forma, o termo anarquia é ligado à tradição anarquista e esta é dividida em diversas correntes, inclusive dando significados distintos a ele. O anarcossindicalismo atual, por exemplo, ainda pensa na anarquia como uma sociedade gerida por sindicatos (sem perceber que os sindicatos são organizações da sociedade burguesa que não existirão mais na sociedade autogerida). Outros termos, como “sistemas de conselhos” e “associação” não são tão adequados, pois além da deformação destas palavras já existir, acabam tendo outros problemas, como por exemplo, o uso de uma palavra que aponta para algo fechado (“sistema”) e uma única forma de organização (conselhos), sendo que os conselhos operários são, desde Pannekoek (1977), mais um princípio organizativo (auto-organização, autogestão) do que uma forma específica e pronta para sempre. A palavra “associação”, por sua vez, é bastante abstrata e que carrega inúmeros outros significados, bem como apresenta dificuldades de gerar derivados, importantes na luta proletária.

A deformação do termo autogestão, que se inicia com a socialdemocracia e eurocomunismo na Europa e ganha terreno com a emergência da contrarrevolução cultural preventiva do pós-estruturalismo (VIANA, 2009) e seus ideólogos, reforçada pela generalização do neoliberalismo e proliferação de cooperativas e ideologias como a da “economia solidária” é bem mais fraca do que no caso dos termos socialismo e comunismo, bem como a novidade da palavra ainda persiste para amplas parcelas da população. Nesse sentido, a luta em torno do termo autogestão e seu significado é fundamental para o próprio projeto autogestionário de transformação radical da totalidade das relações sociais. E por isso a luta pela autogestão é também uma luta cultural pelo significado autêntico desta palavra.

Considerações Finais

O objetivo do presente texto foi realizar uma análise da relação entre signo e ser no caso da autogestão. A palavra autogestão (o signo) pode expressar distintos significados (seres). A intenção aqui foi a de discutir a relação entre signo e ser para recuperar o ser que a palavra autogestão significa, expressa e demonstrar que esse processo faz parte da luta de classes. A luta cultural burguesa (e de suas classes auxiliares, especialmente a burocracia e a intelectualidade) busca, num primeiro momento, silenciar e omitir o uso autêntico do termo autogestão e, num segundo momento, para deformar o seu verdadeiro significado. A luta cultura proletária consiste em evidenciar e divulgar o conceito de autogestão e recuperar o seu significado autêntico.

Assim, o uso do termo autogestão se justifica e devemos efetivar uma luta cultural para recuperar o seu significado autêntico e para combater as deformações e apropriações deste termo pelas ideologias vigentes e do passado. Sem dúvida, para realizar a distinção entre o seu significado autêntico e as suas deformações, algumas vezes usamos “autogestão social”, o que é um truísmo, tal como usar “marxismo libertário” ou “marxismo autogestionário”, pois foram as deformações que ocultaram a sua essência libertária e autogestionária. O presente texto é apenas mais um capítulo dessa longa luta e certamente não é seu epílogo.

Referências
ARVON, Henry. La Autogestion. 2ª edição, México: Fondo de Cultura Económica, 1982.

BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 5ª edição, São Paulo: Hucitec, 1990.

BERGER, Claude. Marx Frente a Lênin. Associación Obrera o Socialismo de Estado. Madrid, Zero, 1977.

CABRAL, Manuel V. Proletariado: O Nome e a Coisa. Porto: A Regra do Jogo, 1983.

CARVALHO, Nancy. Autogestão: O Governo pela Autonomia. São Paulo: Brasiliense, 1983.

CASTORIADIS, Cornelius. Socialismo ou Barbárie. O Conteúdo do Socialismo. São Paulo: Brasiliense, 1983.

FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. 4ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 1987.

GUILLERM, Alain e BOURDET, Yvon. Autogestão: Mudança Radical. Rio de Janeiro, Zahar, 1976.

MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 1988.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. 3ª edição, São Paulo: Hucitec, 1992.

PANNEKOEK, Anton. Los Consejos Obreros. Madrid: Zero, 1977.



TRAGTENBERG, Maurício. Reflexões Sobre o Socialismo. 3ª edição, São Paulo: Moderna, 1989.

VIANA, Nildo. A Consciência da História – Ensaios sobre o materialismo histórico-dialético. 2ª edição, Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.

VIANA, Nildo. Democracia e autogestão. Achegas, v. a, p. 4a, 2008a. Disponível em: http://www.achegas.net/numero/37/nildo_37.pdf

VIANA, Nildo. Manifesto Autogestionário. Rio de Janeiro: Achiamé, 2008.

VIANA, Nildo. Rousseau e a Teoria da Autogestão Social. Revista Eletrônica Espaço Acadêmico, Maringá/PR, v. 53, p. 01-06, 2005. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/054/54viana.htm

WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 5a edição, São Paulo: Pioneira, 1987.





* Professor da Faculdade de Ciências Sociais/UFG e Doutor em Sociologia/UnB.

[1] Construtos, aqui, devem ser entendidos como “falsos conceitos” (VIANA, 2007). Obviamente que a presente definição já explicita o não consenso em torno dos termos, pois a palavra construto possui outros significados em outros discursos. E para entender o que significa um “falso conceito” é necessário entender o significado do termo conceito. Aqui, conceito significa “expressão da realidade”, unidade entre signo e ser, consciência e realidade. Um construto é uma falsa expressão da realidade, um signo que não expressa o ser, o real, mas o deforma.

[2] Entenda-se “censura” por “proibição”, o que significa impedir alguém de fazer algo ou punir caso o faça, que, no caso das palavras, proibir usá-las ou punir caso a façam. Por recriminação entenda-se o ato de condenar moralmente o uso da palavra.

[3] Claro que nem tudo que é marginalizado ou ignorado é algo que deva ser considerado algo que expresse alguma realidade. Os devaneios individuais de certos indivíduos ou intelectuais, podem muito bem ser ignorados por não terem realmente nenhum valor. A ciência das ideias de Destutt de Tracy é um desses casos, pois a tal ciência não vingou e tal definição perdeu o valor. Da mesma forma, há palavras e até conceitos de grande importância para entender a realidade, mas que são ignorados por que expressam concepções revolucionárias que são recusadas pela maioria das pessoas e principalmente pelos representantes intelectuais da burguesia. Assim, entre o “louco” e o teórico há uma grande distância, não só na fundamentação e processo de produção, como também nas razões da marginalização e omissão. Assim, não se deve cair numa concepção ingênua e simplista segundo a qual tudo que é marginalizado e omitido é real e verdadeiro, pois além da luta de classes existem outras subdivisões, idiossincrasias, interesses, desequilíbrios psíquicos, que podem ter a aparência de “revolucionário” e ser outra coisa, inclusive conservadora.

[4] Obviamente que isso tem a ver com o suposto retorno do canibalismo na região do Alba durante a fome e miséria após a revolução bolchevique ou então ao suposto canibalismo durante a estatização forçada do campo sob comando de Stálin.

[5] Quando um partido socialdemocrata ganha uma eleição, trata-se de mudança de governo; quando um partido “comunista”, tal como o bolchevique na Rússia de 1917, toma o poder estatal via insurreição, muda sua forma, já não é mais um estado tzarista, liberal, etc. e, por fim, quando o proletariado destrói o aparato estatal, tal como no caso da Comuna de Paris, temos uma transformação radical do conjunto das relações sociais, pois isso somente é possível com um conjunto de outras mudanças sociais.

[6] Para alguns, “coisa” e “ser” são os termos filosóficos mais abstratos. Para nós, ser é uma categoria do pensamento, uma ferramenta intelectual para pensar o real.

[7] A maculação é atribuição de desonra, impureza, defeito moral, pecado, tal como se encontra nos dicionários.

[8] Alguns pensam em Rousseau como antecessor da ideia de autogestão (GUILLERM e BOURDET, 1976; CARVALHO, 1983), embora isso seja exagerado (VIANA, 2005).

[9] “Assim, os decretos sobre ‘a autogestão’ inauguram, de fato, na empresa, um regime híbrido, que chamamos mais justamente de cogestão” (GUILLERM e BOURDET, 1976).

[10] Sem dúvida, alguns acreditam sinceramente que são “socialistas” ou “comunistas”, mas numa concepção de socialismo que é a burocrática e, no caso do nazismo, era apenas um nome que nada tinha a ver com a ideia, mesmo porque o nazismo sempre foi anticomunista, a não ser no caso de alguns de seus representantes no início que logo foram afastados do partido. A URSS, como todos sabem, era União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (sem sovietes e sem socialismo) o NSDAP, era o Partido Nacional-Socialista Alemão dos Trabalhadores.

[11] Alguns citariam o coletivo Socialismo ou Barbárie, de Lefort, Lyotard e Castoriadis, entre outros. Contudo, a concepção desse coletivo apontava para a “gestão operária” (CASTORIADIS, 1983) e se limitava à gestão das empresas, criando uma ideologia administrativista, de caráter autonomista. Cornelius Castoriadis nunca foi um autogestionário, em nenhuma das três fases do seu pensamento, trotskista, autonomista e pós-estruturalista, ele defendeu tal concepção. 
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Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Autogestão: O Signo e o Ser. Enfrentamento. Goiânia: ano 8, N. 14, jul/dez. 2013.
http://enfrentamento.net/enf14.pdf

Autogestão e Ideologia - Nildo Viana


Autogestão e Ideologia
Nildo Viana*




A autogestão é um projeto que emerge no capitalismo e que ganha vários nomes, sendo que a palavra somente surge no final da década de 1960. Toda palavra, no entanto, está inserida num conjunto mais amplo de uma concepção que lhe dá o sentido. O sentido da palavra autogestão foi deformado com o passar do tempo e nesse contexto é preciso entender esse processo de deformação. Para entender tal processo é fundamental entender a ideologia. A razão para isto é devido ao fato de que a autogestão, no sentido original da palavra e como significado, é oriunda de uma teoria e sua deformação significa sua absorção por uma ideologia. Sendo assim, vamos iniciar o presente texto com uma discussão a respeito dos procedimentos ideológicos de deformação da autogestão e posteriormente colocar alguma de suas principais formas de manifestação no caso do termo autogestão, destacando sua principal forma contemporânea, a ideologia da economia solidária.

A Apropriação Ideológica da Autogestão

A ideologia é um sistema de pensamento ilusório, falsa consciência sistematizada, e sua produção está ligada aos interesses da classe dominante e/ou suas classes auxiliares. Trata-se de um saber complexo, sistematizado, que gera uma inversão da realidade, deforma a realidade apresentando-a e ao mesmo tempo ocultando-a. Não se deve confundir ideologia com ilusão em geral. As ilusões assumem várias formas, inclusive a forma do saber não complexo, do saber comum. Esse saber comum já foi chamado de “senso comum”, “cultura popular”, “saber popular”, “conhecimento cotidiano”, “representações sociais”, “representações cotidianas”, entre inúmeros outros nomes. As representações cotidianas são as formas do saber não complexo e não especializado que todos os seres humanos desenvolvem, inclusive os cientistas, filósofos e teólogos sobre os temas e questões que não abordam em suas produções profissionais/especializadas. A ideologia, ao contrário, é um saber complexo e por isso se distingue das representações cotidianas, inclusive as ilusórias. A ideologia produz ilusões, mas sob forma complexa, o que a torna mais convincente. A ideologia se manifesta como filosofia, teologia, ciência, etc.[1]

A humanidade sempre conviveu com as ilusões, mas antes das sociedades divididas em classes sociais antagônicas, a razão de sua existência era a falta de informação e compreensão da natureza e das relações sociais, devido ao grau de desenvolvimento das forças produtivas. Quando a humanidade supera em grande parte esse obstáculo, o que se amplia com o passar do tempo, ela cria uma nova necessidade de produção de ilusão, agora com raízes sociais: a divisão social do trabalho e as classes sociais com suas necessidades e interesses, especialmente as classes dominantes que precisam negar, de forma intencional ou não, um entendimento profundo das relações sociais, pois não pode declarar abertamente a exploração e a dominação, precisa justificá-las e isso é a fonte da produção da ideologia por parte dos ideólogos. Os próprios ideólogos são produtos da divisão social do trabalho. São aqueles que se especializam no trabalho intelectual e produzem formas de saber complexo que invertem a realidade.

A ideologia está intimamente ligada à luta de classes, não apenas por reproduzir os interesses da classe dominante e/ou de suas classes auxiliares, mas também no sentido de que uma das atividades dos ideólogos é combater as formas de consciência das classes exploradas. Eles fazem isso através da crítica, da desqualificação (como as classes exploradas, devido à divisão social do trabalho, não produzem saber complexo, a não ser em casos individuais, então a desqualificação das representações cotidianas, chamadas pejorativamente de “senso comum” é uma produção da ciência, da forma dominante de ideologia dominante), entre outras formas. No caso do capitalismo, uma das formas assumidas pela luta cultural da burguesia contra o proletariado é a de assimilar e deformar as ideias revolucionárias. Esse foi o caso do que foi feito com o marxismo, entre diversos outros exemplos. Também não faltam estudos que mostram como o saber operário em uma fábrica é apropriado e deformado pelos representantes da classe capitalista.

Esse é o caso da autogestão. A palavra autogestão tem dupla origem[2], mas seu conteúdo antecede sua existência formal. A palavra emerge no bojo do movimento do maio de 1968 na França, quando a rebelião estudantil e luta operária atingiram grande radicalidade e quase se tornou uma tentativa de revolução proletária[3]. Autogestão, nesse contexto, significava uma nova sociedade em substituição à sociedade capitalista. Esse significado foi deformado com a derrota da luta estudantil e proletária.

A derrota do maio de 1968 fez com que a classe capitalista e seus aparatos (principalmente seus ideólogos) realizassem uma contrarrevolução cultural preventiva, ou seja, criaram ideologias diversas para se apropriar e deformar as ideias revolucionárias que emergiram ou ganharam evidência nesse momento de ascensão das lutas sociais. Essa é a época de surgimento do chamado “pós-modernismo”, um nome já problemático e que revela uma consciência falsa, e por isso outros denominaram “pós-estruturalismo”[4]. Isso se aplicou a diversos termos, incluindo ao termo de autogestão. A palavra, que era um outro nome para o que Marx denominou “comunismo”, “livre associação dos produtores”, “autogoverno dos produtores”, etc. ou o que alguns anarquistas denominaram “anarquia”, uma nova sociedade sem estado, classes, capital, etc. fundada no processo no qual a população dirige ela mesma o seu destino e o conjunto das relações sociais, foi reduzida a uma parte do todo e retirada do contexto, que era a sociedade do futuro.

Após essa contrarrevolução cultural preventiva, a palavra autogestão passa a ser usada pelos reformistas e outros, retirando seu caráter revolucionário. Esse processo ocorreu com outros termos, mas ela é o nosso foco aqui. O procedimento ideológico para deformar o termo autogestão é o mesmo que para os demais termos: destotalização e despolitização. A destotalização se caracteriza por negar a importância metodológica da categoria de totalidade, o que significa retirar determinado fenômeno social de seu contexto histórico, social, sua inserção na sociedade como um todo. Derivado disso, ocorre o processo de despolitização, pois assim vira algo meramente técnico, isolado, desligado do Estado, das lutas de classes, do capital, etc.

As diversas concepções ideológicas de autogestão que irão surgir terão essa característica fundamental: retirar a autogestão da totalidade e substituir a concepção totalizante por uma fragmentadora. Assim, há a transformação da autogestão em mero elemento de administração, em algo semelhante a uma cooperativa, etc. A autogestão deixa de ser uma nova sociedade autogovernada pelo conjunto da população e passa a ser gestão de empresas isoladas, cooperativas isoladas, democracia direta, etc. Esse é o procedimento ideológico da deformação da autogestão, pois através deste fantástico e pouco realista desligamento da autogestão da totalidade das relações sociais e abolindo a percepção de que sob forma isolada é impossível sua existência, a não ser temporariamente ou em escala muito limitada e estando distante do Estado e do capital.

As Principais Concepções Ideológicas de Autogestão

Desde o início dos anos 1970, com a contrarrevolução cultural preventiva depois da derrota do Maio de 1968 (VIANA, 2009), começaram a existir diversas deformações do termo autogestão e seu significado. A burocracia partidária, expressa nos partidos socialdemocratas e bolchevistas, buscaram desqualificar a autogestão, colocando que ela era “impossível”, “esquerdista”, “utópica”, etc., ou colocando como parte do seu programa, mas não enquanto projeto de uma nova sociedade, apenas como forma de “gestão democrática”. Esse é o caso da CFDT (Confederação Francesa Democrática do Trabalho, central sindical), PSU (Partido Socialista Unificado), PCF (Partido Comunista Francês, que até se colocou contra o movimento estudantil em 1968), PS (Partido Socialista), CGT (Central Geral dos Trabalhadores, central sindical atrelada ao PCF), etc.

A CFDT foi a primeira e graças ao seu ideólogo, Pierre Rosavanllon, autor de A Era da Autogestão, obra publicada em 1976, iniciou o processo de deformação assimiladora da palavra, sob forma sistemática, ao contrário de outros (tal como alguns bolchevistas, que preferiram negar e criticar a ideia de autogestão). A concepção de autogestão em Rosavanllon é reformista, algo gradual, e que seria uma espécie de forma de gestão das fábricas e empresas, que, com o processo gradual de transformação, se tornaria um dos pilares da sociedade futura (ROSAVANLLON, 1979). Ou seja, autogestão aqui não é totalidade, é parte, a parte política garantida pelo “direito social”, ou seja, uma versão jurisdicista da autogestão. A segunda forma de deformação ideológica da autogestão pode ser vista em Jean-Luc Dallemagne na qual ocorre a recusa da autogestão e uma interpretação ideológica que mescla a concepção de seus defensores com posições reformistas e esquerdistas, visando defender a necessidade de burocracia no “socialismo”, bem como interpretando-a como mera questão de “gestão” (DALLEMAGNE, 1977).

Essas primeiras formas de deformação da ideia de autogestão seriam reforçadas e ampliadas especialmente nos anos 1980, quando a própria classe capitalista passa a querer se apropriar do termo autogestão e transformá-lo em algo compatível com o capitalismo, tornando-se mera “gestão de empresas” (LOJKINE, 1990). Da mesma forma, algumas tendências supostamente de “esquerda” passam a usar o termo autogestão num sentido próximo ao dos reformistas franceses, seja como cooperativa ou “economia solidária”, seja como algo que ocorreria apenas no interior das fábricas. Por isso torna-se necessário a crítica das ideologias que deformam o conceito de autogestão e para isso é necessário mostrar a impossibilidade da autogestão no interior do capitalismo.

Autogestão e Capitalismo

A palavra autogestão, especialmente a partir de 1980, passou a ser usada para designar coisas como “democracia direta”, “forma de gestão ou administração”, “cooperativa” ou “economia solidária”, entre outras concepções ideológicas. Todas essas concepções são ideológicas por utilizar o termo autogestão como se fosse apenas uma parte da sociedade, algo restrito, e que, a partir desse processo de extração do conteúdo totalizante do conceito, pode pensá-lo no interior de outra totalidade, ou seja, dentro do capitalismo.

Pensar a autogestão como “democracia direta” significa pensá-la a partir de uma concepção ideológica, mesmo para quem se diz anarquista ou use qualquer outro nome. Isso ocorre por reproduzir a concepção ideológica que separa a realidade em diversas partes separadas e separáveis, promovendo um isolamento de coisas que estão unidas na vida real. Sem dúvida, a divisão social do trabalho no capitalismo cria a política institucional (a instância do Estado e dos aparatos burocráticos), bem como o modo de produção capitalista cria um conjunto de divisões e se distingue de outros aspectos da realidade, assim como se cria um setor especializado na produção cultural. Contudo, mesmo no capitalismo, a “política”, a “economia”, a “cultura”, etc., não estão separadas totalmente. Eles são partes do todo e sua relativa separação é marcada pela relação, determinação, imbricação, correspondência, etc. A doutrina dos fatores – uma ideologia que divide a realidade em “fatores”, tais como o “fator político”, “fator econômico”, etc. – como se eles fossem independentes e autônomos, revela apenas a percepção da aparência da divisão social do trabalho no capitalismo[5]. Essa percepção da aparência, por se limitar a ela, é fetichista e ideológica. O projeto autogestionário é totalizante não por reduzir a divisão social do trabalho e sim por aboli-la e, portanto, numa sociedade autogerida, nem no nível da aparência tais divisões seriam percebidas, já que seriam inexistentes.
A ideia de “democracia direta” é em si problemática e considerada sinônimo de autogestão significa reduzir o projeto autogestionário a algo que seria separado, a instância política, tal como no capitalismo. Assim, isso significa pensar a sociedade do futuro, como suas relações sociais radicalmente diferentes, a partir dos termos e construtos do presente, que expressam as relações do capitalismo. Ao projetar termos e construtos do capitalismo para a sociedade autogerida, essa concepção simplesmente deforma a ideia de autogestão, sendo a projeção do capitalismo e sua divisão social do trabalho para o futuro, tendo caráter contrarrevolucionário. Além disso, ainda promove a confusão de pensar na possibilidade da autogestão no interior do capitalismo, pois sendo apenas uma parte da realidade, a da política, se poderia pensar em “democracia direta” no seu interior.

A ideia de autogestão como “gestão de empresas”, seja de “fábricas recuperadas”, seja como forma de administração de empresas capitalistas, é outra deformação ideológica do conceito original. As empresas capitalistas funcionam para realizar o processo de exploração e uma “autogestão” no seu interior é impossível. Nesse caso, o que pode existir é “participação”, “controle operário” ou “cogestão”. A participação é o que ocorre nas empresas capitalistas que usam formas de administração participativas, nas quais os trabalhadores podem influenciar, discutir, e até mesmo decidir alguns aspectos do processo produtivo, mas jamais o processo em sua totalidade. A classe capitalista jamais permitiria isso, embora, sem dúvida, possa usar um nome bonito como “autogestão” e permitir a participação dos trabalhadores em parte do processo para aumentar a produtividade e a docilidade dos mesmos. Essa participação pode ser mais ampla e permitir o que foi denominada “controle operário”, processo no qual a participação geral é mais intensa e o processo de trabalho fica sob o controle dos trabalhadores. Aqui é apenas uma questão de grau, quantitativo, e o processo de trabalho, uma parte do processo de produção em geral, fica sob a responsabilidade do controle dos trabalhadores. Ou seja, trata-se de controle de apenas uma parte da produção e não de sua totalidade.

As chamadas “fábricas recuperadas” são empresas capitalistas falidas ou abandonadas que os trabalhadores passam a gerir. Aqui nós temos o caso da cogestão, pois o processo de trabalho e o conjunto da produção em determinada fábrica ou empresa passa a ser gerida pelos trabalhadores. No entanto, isto não é autogestão, por mais que alguns insistam em usar tal termo. É cogestão, pois autogestão pressupõe a gestão de todo o processo, nos meios e fins, na forma e no conteúdo. A fábrica isolada está submetida ao mercado, à necessidade de matérias-primas, tecnologia, máquinas em geral, bem como o que produz é para o mercado e não para o autoconsumo. Nesse sentido, a gestão é apenas do processo de produção local, ou seja, na unidade de produção, sem haver autogestão das demais unidades de produção (fornecedores, etc.), sem controle do que se produz e para quem se produz. Trata-se de cogestão porque se define apenas o como se produz.

A última forma de ideologia assimiladora da autogestão, que por sua vez pode assumir inúmeras outras formas, é a do cooperativismo. As cooperativas são formas organizacionais que trabalhadores utilizam para coletivamente produzir ou consumir. Elas parecem se aproximar mais da autogestão, pois nelas a figura do capitalista inexiste. Mas, tal como no caso das fábricas recuperadas, as cooperativas estão envolvidas na divisão capitalista do trabalho e, portanto, decidem apenas o como produzir e não os demais aspectos, é uma gestão de uma unidade de produção cercada pelo modo de produção capitalista.

Todas essas concepções ideológicas de autogestão se espalham pela sociedade e visam, na maioria dos casos, simplesmente apagar da memória social a luta heroica do final dos anos 1960 e as lutas revolucionárias do início do século 20, entre diversas outras, bem como as teorias e concepções revolucionárias produzidas por Marx e diversos outros. A autogestão é uma totalidade, é uma nova sociedade, como “anarquia”, “comunismo”, sendo que o último nome também foi deformado e o primeiro está ligado a uma corrente política com múltiplas subdivisões e, portanto, definições.

A autogestão não somente é uma totalidade, como não pode ser desligada da mesma e existir em outra. Por isso é impossível autogestão no interior do capitalismo, a não ser em experiências temporárias e esporádicas, existindo através do conflito permanente. Dificilmente ela se prolonga por muito tempo. Nas melhores tentativas é uma “autogestão imperfeita”, ou seja, é mais um objetivo do que uma realidade. E existem diversos motivos para ser assim. Nas épocas de revolução social, a autogestão se manifesta de forma mais desenvolvida e completa e caminha para sua generalização, o que pode ser impedido pela contrarrevolução, o que geralmente ocorreu na história das lutas revolucionárias. Em períodos não-revolucionários, é impossível a autogestão em empresas. Para entender isso é necessário entender o capitalismo, outra forma de sociedade, outra totalidade.

No capitalismo, o capital predomina e o mercado, o lugar das relações entre os capitais privados, acaba cercando tudo e realizando o processo de mercantilização das relações sociais, bem como da transformação de todas as formas de produção em capitalistas, semicapitalistas ou subordinadas ao capitalismo[6]. O cálculo mercantil se torna predominante não apenas na produção capitalista, mas em todas as formas de produção e distribuição da sociedade capitalista. As empresas capitalistas são aquelas voltadas para a produção de mais-valor ou para a sua reprodução/repartição, incluindo o capital industrial, comercial, educacional, comunicacional, etc. Qualquer pequena empresa acaba tendo que se submeter ao domínio do capital e optar por ser capitalista, semicapitalista ou subordinado ao capitalismo. As cooperativas são semicapitalistas e o modo de produção camponês subordinado ao capitalismo. Para entender esse processo devemos reconstituir o processo de passagem do não-capitalismo para o capitalismo.

A transição do feudalismo para o capitalismo significou não somente a queda paulatina do modo de produção feudal, mas o surgimento do modo de produção capitalista e diversos modos de produção subordinados. O modo de produção camponês, por exemplo, emerge nesse contexto histórico marcado pela subordinação ao capitalismo. No modo de produção camponês há a produção de valores de uso e valores de troca, ou seja, se produz para o autoconsumo e para o mercado, sendo que é neste último que se concretiza a subordinação, bem como através da ação estatal.

Esse processo abre espaço para a criação de modos de produção semicapitalistas, fundados em pequenas propriedades sem uso de força de trabalho assalariada. Essas formas de produção se assemelham ao modo de produção camponês e demais modos de produção subordinados, mas com o diferencial de que produzem apenas valores de troca, ou seja, produzem para o mercado e não produzem os valores de uso, para o autoconsumo (o que não impede, em certos casos, de consumir coisas produzidas, mas elas são processos nos quais o consumo é de mercadorias, ou seja, do que foi produzido para venda e subtraído, entrando na contabilidade geral do processo de produção e em quantidades limitadas para não comprometer o lucro e sobrevivência da mesma).

Este é o caso do modo de produção cooperativista. As cooperativas de produção[7] são um modo de produção semicapitalista, pois não só estão totalmente subordinadas à divisão capitalista do trabalho, como também realizam o processo de produção exclusivo de mercadorias. A repartição do lucro é realizada sob duas formas, a especificamente capitalista, salários e a forma cooperativa, rendimentos pela propriedade coletiva. Ela é semelhante à cogestão das fábricas, pois nessas os trabalhadores se tornam proprietários e recebem além do salário um outro rendimento. Contudo, existem casos em que alguns ganham apenas rendimentos, outros apenas salários, e casos em que recebem ambos. Na cooperativa, os trabalhadores determinam o como produzir, mas não os demais aspectos. Claro que em diversas experiências existe uma divisão entre proprietários e assalariados e isso significa que a cooperativa se transformou numa empresa capitalista.

Esse processo de passagem de modo de produção semicapitalista, cooperativista, para capitalista, é resultado do sucesso das cooperativas no interior do modo de produção capitalista. Quanto maior é o desenvolvimento das cooperativas, mais elas se integram no capitalismo, e passam a criar obstáculos para entrada de novos sócios, buscam o aumento do lucro e gerar a separação entre trabalhadores assalariados e dirigentes/proprietários. Assim, há uma metamorfose nas cooperativas, tanto no processo histórico que amplia sua integração no capitalismo, quanto pelas formas capitalistas de apropriação delas, seja colocando-as como apêndices lucrativos ou usando-as como fachadas para exploração capitalista disfarçada. As cooperativas não possuem condições de assumir um papel revolucionário, pois nascem e se desenvolvem na sociedade capitalista, subordinadas ao mercado, ou seja, aos capitais individuais. Ou elas fracassam e falem, ou prosperam e se tornam capitalistas.

Mas não é apenas a dinâmica capitalista do mercado dominado pelos capitais individuais que corroem as cooperativas. O Estado cumpre um papel fundamental nesse processo, sob as mais variadas formas: legislação, impostos, taxas, etc. As cooperativas precisam ser legalizadas e atender um conjunto de requisitos impostos pelo Estado, bem como dispêndios que esse exige, tornando sua vida ainda mais difícil de autossustentação.

Outros elementos da sociedade capitalista interferem e contribuem para o fracasso ou apropriação capitalista delas, tal como a cultura, a mentalidade e os valores dominantes. No início do século 19 foi possível pensar um cooperativismo revolucionário, que logo foi superado pelo reformista e pelo pragmático, até chegar à ideologia da economia solidária[8]. E os ideólogos e ideologias são outros obstáculos para as cooperativas, que se tornaram apêndices do capitalismo. Por isso é importante analisar uma das mais fortes ideologias que deturpam a ideia de autogestão hoje e que é uma forma contemporânea de se pensar o cooperativismo, a chamada “economia solidária”.


A Ideologia da Economia Solidária
A chamada “economia solidária” é uma nova versão ideológica de deformação do conceito de autogestão. O que se chama “economia solidária” é, no fundo, uma forma de cooperativa degenerada. Na verdade, a dita “economia solidária” não apresenta nada de muito novo em relação às cooperativas pragmáticas, a não ser que em muitos casos fazem um discurso pseudorrevolucionário, aliado a um atrelamento maior ao Estado capitalista, e vive vegetando na sociedade capitalista ou realizando a passagem para a forma capitalista de produção.

Quais são as reais diferenças entre a economia solidária e as cooperativas pragmáticas? No fundo, as diferenças concretas, reais, da economia solidária em relação às cooperativas pragmáticas são: a) o discurso pseudorrevolucionário que apela para “solidariedade”[9] e que se coloca como um modo de produção intersticial que caminha para o socialismo; b) a sua constituição no contexto cultural e social do capitalismo contemporâneo, marcado pelo regime de acumulação integral, com seu Estado neoliberal e suas políticas de redução de gastos estatais e responsabilização da sociedade civil, aliado ao aumento do desemprego e nesse contexto as cooperativas chamadas solidárias servem como estratégia de sobrevivência e atraem desempregados e subempregados; c) o seu atrelamento ao Estado, através do SENAES – Secretaria Nacional de Economia Solidária, FBES – Fórum Brasileiro de Economia Solidária, entre outras instituições estatais, incluindo as universidades[10].

O financiamento estatal e do capital bancário é apenas a forma do capital assimilar tais experiências. Enquanto o cooperativismo revolucionário do século 19 era produção dos próprios trabalhadores, o cooperativismo estatista, chamado “economia solidária”, pode emergir a partir de iniciativas estatais ou dos próprios trabalhadores, mas que são assimiladas e coordenadas pelos governos ou suas instituições. O primeiro processo ocorre por incentivo e iniciativa do governo e o segundo quando a iniciativa é de setores da população que o Estado passa a coordenar em sua rede de instituições, supostamente de apoio, mas, no fundo, de atrelamento.

O interesse estatal na economia solidária é fundamentalmente diminuir os conflitos sociais e desemprego, graças aos seus efeitos problemáticos para a governabilidade, bem como cooptar diversos setores da sociedade, principalmente os mais beneficiados com a cooperativas estatistas[11].

O discurso ideológico da economia solidária se manifesta sob várias formas e não é nosso objetivo analisá-lo aqui em sua totalidade. No fundo, as iniciativas de economia solidária são ou formas de manifestação do modo de produção cooperativista, logo, semicapitalista, ou formas capitalistas disfarçadas. Logo, não tem nada a ver com autogestão. Obviamente que um dos aspectos de sua concepção ideológica reside justamente em usar o termo autogestão. Claro está que o uso da palavra autogestão na economia solidária é ideológico e também limitado, ou seja, não tem o caráter totalizante de autogestão do processo de produção e do conjunto das relações sociais. Nem sequer se coloca como autogestão das cooperativas. A autogestão nas empresas de economia solidária refere-se a apenas um dos seus aspectos, o administrativo[12]. Nesse caso, a relação entre economia solidária e autogestão é apenas imaginária, uma ficção que serve aos interesses do capital e do Estado e dos cooptados por ela.

As empresas cooperativas estatistas, chamadas de “economia solidária”, estão submetidas ao capital e ao Estado, como todas as cooperativas, só que, no caso do aparato estatal, de forma mais intensa. Em suas formas mais desenvolvidas e consolidadas, são empresas capitalistas disfarçadas e em suas formas mais precárias, são formas de disfarçar o trabalho precarizado e estratégia de diminuição do desemprego. Nesse sentido, economia solidária nada tem a ver com o projeto autogestionário e o tratamento que os seus ideólogos dão a essa palavra é apenas mais uma deformação ideológica do seu significado.

A ideologia que afirma tratar-se de um modo de produção intersticial, ou seja, um espaço de produção não-capitalista dentro do capitalismo, que poderia se generalizar, superando o capitalismo, tal como sugerido por Paul Singer (), é absolutamente falsa. Ela é falsa por vários motivos. Um deles remete ao fato de que o modo de produção cooperativista é semicapitalista e vegeta no capitalismo. Ele não constitui alternativa ao capitalismo e nem tem capacidade de se generalizar, pois sua prosperidade, enquanto empresa cooperativa particular, significa sua passagem para se tornar uma empresa capitalista e seu fracasso significa a falência. Da mesma forma, a ampliação do número de cooperativas só seria possível se fossem as prósperas, que já não são mais cooperativas propriamente ditas e sim empresas capitalistas. A ampliação de cooperativas que fracassam e são precárias é algo tão fantástico e fantasioso que só no mundo ilusório da ideologia isso poderia ocorrer. Um modo de produção semicapitalista ao se desenvolver se torna capitalista e ao não se desenvolver, entra em colapso e deixa de existir.

O modo de produção cooperativista, por ser um modo de produção semicapitalista, não tem como ser uma alternativa ao capitalismo. Ele nasce dentro do capitalismo e segue a dinâmica do mercado e a regularização do Estado, reproduzindo internamente a dinâmica de um modo de produção semicapitalista. A sua dinâmica é a mesma das pequenas propriedades[13] no interior do capitalismo. Assim, a sua comparação, novamente, como modo de produção camponês e o modo de produção das pequenas propriedades no capitalismo ajudam a entender sua dinâmica.

O modo de produção capitalista tem sua dinâmica centrada na acumulação de capital, no qual o investimento em dinheiro permite a produção de mercadorias e exploração do trabalho do proletário, que gera mais dinheiro, sendo este reinvestido, aumentando a produção/exploração e o lucro e, por conseguinte, o dinheiro, e assim sucessivamente. O seu movimento pode ser esquematizado da seguinte forma: D-M-D’-M-D’’-M-D’’’[14] e assim sucessivamente, representando a reprodução ampliada do capital, o que gera a concentração e centralização do mesmo.

O modo de produção camponês tem outra dinâmica. Ele produz parte do que é consumido e devido sua subordinação ao capitalismo, não consegue acumular capital. A sua dinâmica pode ser esquematizada assim: M-D-M, ou seja, produz mercadoria para a venda no mercado e com isso adquire o dinheiro para comprar mercadorias que não produz, o que é possível porque além de produzir mercadorias produz produtos para autoconsumo, valores de uso, e só compra o que não consegue produzir.

O modo de produção das pequenas empresas, ou “pequeno-burguês”, possui outra dinâmica. Embora possa consumir alguns itens que produz, é algo muito restrito, pois sua inserção no mercado e o tipo de produção é voltada para atender ao consumo alheio. Ele produz mercadorias exclusivamente ao contrário do modo de produção camponês. Isso não só lhe torna mais dependente do mercado como também gera outra dinâmica. Essa é a dinâmica da produção que se autossustenta e obtém um lucro mínimo, o que faz com que sua reprodução seja problemática. Tal como no caso do campesinato, sua propriedade é nominal, é mais posse do que propriedade, pois os meios de produção que constituem o capital fixo (terra, instalações, máquinas, etc.) são pagos em longo prazo, ou são hipotecados, etc., e sua manutenção é sempre difícil. Eles estão, como os camponeses, subordinados à força do grande capital comercial e das outras formas do grande capital e da regularização do Estado burguês. A sua dinâmica pode ser assim esquematizada: D-M-D’-M-D’-M-D’’-M-D’, ou seja, a sua acumulação é lenta e pode regredir, falindo ou tornando-se presa fácil para as empresas capitalistas, cuja concentração e centralização destroem as empresas menores (mesmo capitalistas e com lucratividade elevada).

Essa é a mesma dinâmica do modo de produção cooperativista e da sua versão ideológica denominada “economia solidária”, que tem uma maior possibilidade de existir e talvez se manter graças ao seu caráter estatista, pois o apoio do Estado (financeiro, técnico, etc.) faz com que as falências demorem mais ou ajudam na prosperidade daqueles que abandonam o caráter cooperativo para assumir a forma capitalista.
Isso significa que a produção cooperativista, e a “economia solidária” mais especificamente, não são um modo de produção “intersticial” que possa ser alternativa ao capitalismo. Trata-se de um modo de produção semicapitalista, voltado para a produção de mercadorias e subordinado ao mercado e ao Estado, sem a menor possibilidade de se opor ao capitalismo ou de superá-lo.

Esse processo, no entanto, está ligado ao problema mais geral de que o comunismo ou a autogestão social não pode emergir dentro do capitalismo, já que é engolido pelo movimento do capital. Se o capitalismo emerge no interior do feudalismo em crise, é devido ao fato de que ele nasce da propriedade privada burguesa[15], a sua superação não pode ocorrer no seu interior, graças à sua dinâmica que destrói qualquer concorrente, pois a reprodução ampliada do capital, como diz o nome, é insuperável por outras formas de produção. É por isso que a autogestão não surge como modo de produção dentro do capitalismo, ou, como diriam outros, “economicamente”.

A autogestão como processo de domínio coletivo dos seres humanos associados sobre o seu destino e o processo de produção e do conjunto das relações sociais, é totalizante, mas se inicia na luta, na negação do capitalismo e afirmação de si, que é afirmação da auto-organização e autoformação. Não é no mercado e com propriedades, pequenas ou não, supostamente coletivas ou não, que a autogestão se coloca como possibilidade. A sua possibilidade pressupõe a superação do capitalismo e esta não é feita por concorrentes (sejam pequenos empresários ou cooperativas) e sim por dentro, pelo próprio proletariado que é explorado e pode destruir as relações de produção capitalistas e construir as relações de produção comunistas e isso pode se iniciar nas fábricas, empresas, lojas, mas tem que se generalizar para toda a sociedade, não apenas no campo da produção, mas também em todas as formas sociais (abolindo o Estado, o mercado, o dinheiro, gerando novas relações sociais de produção do saber, etc., todos sob o signo da autogestão).

A autogestão, como processo de domínio consciente dos indivíduos sobre suas vidas, emerge quando a luta expressa isso e, portanto exige organização coletiva autogerida e consciência desenvolvida desse processo, não só do presente (um conselho de fábrica que consegue perceber e realizar a autogestão de sua luta), mas do futuro, colocando a necessidade de realização do projeto autogestionário, que é a generalização da autogestão, o que implica, por sua vez, a superação da totalidade do capitalismo (capital, estado, etc.). Logo, nada mais ilusório do que o discurso ideológico da “economia solidária”, inclusive com o agravante de pensar que o Estado capitalista – com apoio de instituições burguesas e empresas capitalistas – incentivaria, como é o caso, o anticapitalismo dentro do capitalismo. No máximo, a economia solidária é um concorrente e pobre do capital, que tão logo se amplia, se transforma nele. É um sócio menor que quer ser como o maior. A autogestão é sua negação total e nasce das lutas autogeridas e não de empresas semicapitalistas.

Referências

ARVON, Henry. La Autogestion. 2ª edição, México: Fondo de Cultura Económica, 1982.

DALLEMAGNE, Jean-Luc. Autogestão ou Ditadura do Proletariado. Lisboa, Socicultur, 1977.

DURKHEIM, Emile. Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo, Martins Fontes, 1995.

LABRIOLA, Antonio. La Concepcion Materialista de la História. Madrid, Era, 1979.

LOJKINE, Jean. Novas Políticas de Integração Patronal ou Premissas Autogestionárias? In: SOARES, Rosa Maria (org.). Gestão da Empresa, Automação e Competitividade: Novos Padrões de Organização e de Relações de Trabalho. Brasília: IPEA, 1990.

PLEKHANOV, G. A Concepção Materialista da História. 4ª edição, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974.

ROSANVALLON, Pierre, La autogestión. Madrid, Fundamentos, 1979.

SINGER, Paul. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002.

VIANA, Nildo. A Consciência da História – Ensaios sobre o materialismo histórico-dialético. 2ª edição, Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.

VIANA, Nildo. Cérebro e ideologia. Jundiaí: Paco Editorial, 2010.

VIANA, Nildo. O Capitalismo na era da acumulação integral. São Paulo: Idéias e Letras, 2009





* Nildo Viana é sociólogo e filósofo.

[1] Para maiores detalhes sobre ideologia, veja Viana, 2011.

[2] A origem do conteúdo remete ao movimento revolucionário do século 19 e antecede a origem formal que foi no maio de 1968 em Paris.

[3] Isso foi antecedido pelo uso do termo na antiga Iugoslávia, sendo adotado na França e ganhando significado distinto e revolucionário (ARVON, 1982).

[4] O termo pós-estruturalismo é utilizado por que essas ideologias surgem depois do modismo estruturalista nas ciências humanas e filosofia nos meios acadêmicos, superado pela própria luta de classes. O termo pós-modernismo é muito mais ambicioso, quer romper com o modernismo (toda produção cultural do período moderno, ou seja, capitalista) e é por isso que grande parte dos ideólogos também defende a ideia de que a sociedade capitalista foi substituída por uma sociedade pós-moderna.

[5] A crítica da ideologia dos fatores é antiga, e seus pioneiros foram Plekhanov (1974) e Labriola (1979). Veja também Viana, 2007.

[6] Para um aprofundamento sobre isso, confira meu livro A Mercantilização das Relações Sociais – Modo de Produção Capitalista e Formas Sociais Burguesas.

[7] As cooperativas de crédito e de consumo, como expressam relações de distribuição capitalistas, e se encontram na imbricação entre modo de produção e formas sociais de regularização, são, então, capitalistas, já que seu papel é possibilitar a reprodução do capitalismo.

[8] A história do cooperativismo acompanha a história do desenvolvimento capitalista e dos regimes de acumulação e por isso é possível observar que o cooperativismo revolucionário é da época da acumulação extensiva, o cooperativismo reformista da acumulação intensiva, o cooperativismo pragmático da acumulação conjugada e o cooperativismo estatista da acumulação integral.

[9] A solidariedade é um valor universal, autêntico. No entanto, os valores autênticos são deformados se inseridos numa proposta de valores dominantes, axiológicos. Por conseguinte, defender a solidariedade pode parecer revolucionário numa sociedade competitiva como a capitalista, mas isso depende do conjunto do discurso. Um exemplo ilustra essa questão: o sociólogo conservador e moralista, Émile Durkheim, colocou a solidariedade como um dos pilares do seu edifício ideológico e axiológico (DURKHEIM, 1995). Ele postulava a existência de uma solidariedade na sociedade moderna (capitalista) e por isso negava a existência da luta de classes e da necessidade de transformação social radical. Da mesma forma, a questão da solidariedade, pode ser usada para sustentar e reproduzir os valores dominantes e a sociedade capitalista.

[10] E complementarmente instituições privadas e as chamadas ONGs e Terceiro Setor.

[11] Não é sem motivo que tal iniciativa emerge no governo neoliberal de Lula, visando cooptar setores da sociedade civil para garantir a manutenção do Partido dos Trabalhadores no poder. O seu caráter estatista é pouco percebido graças ao próprio discurso da economia solidária e sua estratégia ideológica de assimilar outras experiências históricas, como as do cooperativismo revolucionário.

[12] Isso pode ser visto na obra de seu principal ideólogo, Paul Singer (2002), tal como se vê no livrinho Introdução à Economia Solidária (publicado pela Fundação Perseu Abramo, do Partido dos Trabalhadores), no qual seria mais “democrática” e nas empresas maiores, mesmo estas tendo hierarquias, partiriam de “baixo para cima”. Obviamente que isso é apenas discurso, e falso, que não parte das relações sociais concretas, mas mesmo se fosse assim, no caso das pequenas empresas “solidárias”, não seria autogestão e sim, no máximo, cogestão. Nas grandes empresas “solidárias” nem cogestão existe, pois os trabalhadores estão separados da direção e esta concretamente toma as decisões e possuem as informações e outros meios de administração que os trabalhadores não possuem.

[13] As pequenas propriedades são geralmente aquelas empresas que possuem apenas o trabalho familiar ou agregado de poucos assalariados que ocupam espaços em que o capital ainda não tomou conta ou que o fez de forma incompleta, deixando formas marginais de produção. Trata-se do que alguns chamam de “pequeno-burguês”, mas que a diferença em relação ao modo de produção capitalista não é apenas de quantidade, mas também de qualidade e que dá margem para a confusão da classe dos pequenos proprietários com a dos capitalistas por causa do nome “burguês”.

[14] D = dinheiro; M = mercadoria; D’ = mais dinheiro que D; D’’ = mais dinheiro que D’.

[15] Ou pequeno-burguesa, como alguns diriam, sendo que o sucesso desta está ligado ao processo histórico, no qual a existência de poucas grandes empresas permitia que as pequenas prosperassem e se tornassem grandes, o que ocorreu e no momento histórico posterior, essas ex-pequenas empresas que agora são grandes impedem o desenvolvimento de novas pequenas empresas.

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