quarta-feira, 30 de novembro de 2016

A PEC 241/55 E AS POLÍTICAS DE AUSTERIDADE



A PEC 241/55 E AS POLÍTICAS DE AUSTERIDADE

Nildo Viana

Vivemos numa época obscura e curiosa. A proliferação de discursos e discussões, em parte devido a conjuntura da sociedade brasileira, em parte devido às redes sociais e novos meios de comunicação, convive com o reino da superficialidade. Muitas informações e muitas opiniões convivendo com poucas reflexões e pouca criticidade. A sociedade brasileira está vivendo um caos que teve seu início com dois processos simultâneos: crise político-institucional e crise pecuniária (“econômica”). A origem desses processos remonta ao primeiro Governo Dilma, que é quando ocorreram os primeiros sinais de desestabilização do regime de acumulação integral no Brasil e se iniciou a crise político-institucional (esta a partir das manifestações de 2013) e ambas foram se intensificando nos anos posteriores. Hoje, estamos diante de um Governo que veio com a promessa de resolver essas duas crises, mas ainda não conseguiu resolver a crise principal e não superou totalmente a crise política-institucional, tanto pela crise de legitimidade da democracia representativa, quanto pela crise de governabilidade que ainda não se resolveu e ainda ameaça agravar-se pela lentidão, incompetência e propostas impopulares do atual governo.

O DISCURSO TÉCNICO DO BLOCO DOMINANTE

A proposta da PEC[1] 241/55, realizada pelo Governo Temer, visa estabelecer um teto para os gastos públicos durante 20 anos (com possibilidade de revisão em 10 anos). Durante esse período, os gastos públicos não poderiam ser maiores do que a inflação. Isso incluiria a educação e a saúde, que só poderiam ter mais gastos se os recursos fossem oriundos de outras áreas. Ao contrário do que alguns dizem, não se trata de “congelamento” e sim de um “teto” (máximo) para gastos, que seriam os atuais e com acréscimos calculados com base na inflação. A justificativa para tal proposta é realizada a partir de um discurso técnico. Existe a necessidade de equilíbrio orçamentário por parte do Estado, e nos últimos anos ocorreu um aumento dos gastos estatais acima da receita. Se o Estado gasta mais do que arrecada, então promove a dívida pública. O quadro abaixo explicita esse processo (clique na imagem para ver em tamanho maior):

Disponível em: http://www.politize.com.br/wp-content/uploads/2016/07/teto-de-gastos-pu%CC%81blicos-.png 
A partir dessas informações, fica claro a necessidade de resolução do problema, pois o aumento da dívida pública (interna e/ou externa) traz um acréscimo nas despesas estatais (juros, etc.) e tende a piorar ainda mais a situação. Nesse sentido, o discurso técnico apela para o cálculo mercantil e assim se justifica: o Estado não pode gastar mais do que arrecada. A solução encontrada pelo governo Temer é a PEC 241/55 (aliadas a outras políticas de austeridade, como a reforma da previdência). Se não fizer isso, o país, que já passa por dificuldade, tende a entrar numa crise grave, pois a dívida pública aumentaria, os recursos se tornariam ainda mais escassos e o desequilíbrio afetaria as despesas futuras. Nesse sentido, segundo o discurso técnico, não existe outra solução e por isso as políticas de austeridade, a começar pela PEC 241/55, é uma necessidade.

A PEC 241/55 seria, pois, um remédio amargo que durante 20 anos seria usado para recuperar o país e possibilitar o retorno do crescimento econômico e ajuste entre receita e despesas estatais. Uma vez havendo a recuperação, os gastos poderiam novamente subir. Em dez anos isso poderia ser revisto, caso a recuperação ocorresse num ritmo e grau que o possibilitasse.

Esse discurso é verdadeiro? A situação é realmente essa? Tais políticas resolvem o problema? Essas são questões fundamentais e que pretendemos responder nos próximos artigos. No entanto, é necessário entender que existe uma forte oposição à aprovação da PEC 241/55. Um outro discurso existe. Esse é o discurso demagógico do bloco progressista e a sua análise é necessária antes da crítica do discurso técnico do bloco dominante.

O DISCURSO DEMAGÓGICO DO BLOCO PROGRESSISTA

A PEC 241/55 vem sendo questionada por vários setores da sociedade. No entanto, grande parte daqueles que questionam possuem pouca informação a respeito e muitos apenas seguem uma corrente de opinião oposicionista sem maiores reflexões e análises. A origem dessa corrente de opinião é o discurso demagógico do bloco progressista, que rivaliza com o discurso técnico do bloco dominante. O discurso demagógico do bloco progressista, por sua vez, tem como origem e matriz principal o neopopulismo petista e seus resquícios e viúvas após o impeachment de Dilma Roussef.

O discurso demagógico é aquele que está atrelado ao populismo, considerado uma “política de massas” (WEFFORT, Francisco. O Populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978). O populismo visa ganhar o apoio das “massas” e para isso realiza promessas (incluindo as irrealizáveis e as que não serão cumpridas), políticas assistencialistas, discursos com tal objetivo. No fundo, o que ocorre hoje não é o populismo que vigorou, por exemplo, com Getúlio Vargas e sim um “neopopulismo”. O neopopulismo atua em relação às classes desprivilegiadas (“massas”), mas atinge outros setores (especialmente a intelectualidade) com sua demagogia. A característica central do neopopulismo atual é realizar um discurso social-democrata desligado de qualquer pretensão e possibilidade de sua concretização. O neopopulismo, assim como o populismo, gera um discurso demagógico. Esse discurso é caracterizado por querer agradar o seu público-alvo, e, para tanto, lança mão de promessas diversas (algumas que serão efetivadas e muitas que não serão, algumas irrealizáveis, etc.) com o objetivo de conquistar o apoio (e o voto, dependendo do caso). Diversos recursos são utilizados, entre os quais a manipulação de informações e sentimentos dos que pretende conquistar o apoio.

No caso da PEC 241/55 o discurso demagógico atua principalmente através da sua negação. Segundo o discurso demagógico contrário às políticas de austeridade, embora possua diversas versões e variações, afirma que a PEC 241/55 provocará cortes em educação e saúde, precarizando ainda mais essas áreas, além de atingir o salário mínimo, o Plano Nacional da Educação, etc. Algumas das versões sobre a PEC apelam para um certo terrorismo intelectual, ao afirmar que haveria “congelamento de gastos”, “implosão do país”, “desmonte do Estado”, “destruição da educação pública”, etc. O discurso demagógico geralmente não realiza uma análise mais profunda da PEC 241/55 e das políticas de austeridade. Mesmo quando se trata de economistas ou outros especialistas, a superficialidade na análise está presente. O foco do discurso demagógico do bloco progressista é nas consequências da PEC 241/55 para a educação e saúde.

O elemento fundamental desse discurso é mostrar que a PEC trará prejuízos para as políticas públicas, gerar mobilização contra o governo Temer e suas políticas de austeridade. Não há nenhuma discussão aprofundada sobre a situação do país. O máximo que fazem é apontar que a “crise” é uma invenção do Governo e dos meios oligopolistas de comunicação. Alguns acusam o capital financeiro de ser o principal beneficiário e razão das políticas de austeridade. Nesse contexto, a única alternativa apresentada é a negação, ou seja, a luta para evitar a PEC 241/55, reforma da previdência, etc. A alternativa para resolver os problemas postos pelo discurso técnico (defasagem entre arrecadação e gastos, crise, etc.) inexiste, pois a suposição de inexistência de problema anula a necessidade de alternativa. Deixemos tudo como está, ou melhor, como estava durante o governo Dilma.

Aqui é possível um conjunto de questionamentos: esse discurso é verdadeiro? A situação é realmente essa? Basta evitar tais políticas? Essas questões serão respondidas nos próximos artigos e são, tal como as anteriores sobre o discurso técnico, de fundamental importância. A crítica desse discurso é tão necessária quanto a crítica do discurso técnico. Os dois próximos artigos serão dedicados a realizar tal crítica.

CRÍTICA AO DISCURSO DEMAGÓGICO DO BLOCO PROGRESSISTA

O discurso demagógico do bloco progressista é produzido por um conjunto de intelectuais, reproduzido por determinados meios de comunicação e acabam gerando uma corrente de opinião que atinge os crédulos e consegue assim um certo apoio de setores da população. Mas, assim como o discurso técnico do bloco dominante, que analisaremos adiante, ele é falho.

O discurso demagógico do bloco progressista é condenável pelo simples fato de ser demagógico. Além disso, ele é assim por dois motivos: por ser oposicionista (ao governo) e por precisar de apoio popular. Assim, ele precisa manter uma oposição e apoio popular. Desta forma, ele concentra o mal no Governo Temer. Obviamente que o Governo Temer merece ser criticado, mas isso não anula o problema real e nem retira a necessidade de uma solução (que não pode ser simplesmente não fazer nada, evitando aprovar as políticas de austeridade). Isso também não anula o fato de que o problema se iniciou no governo defendido pela maioria esmagadora do bloco progressista. Em 2014, se alguns ajustes tivessem sido realizados, bem como no ano seguinte, a situação seria um pouco melhor. Da mesma forma, se os governos petistas não tivessem elevados os gastos estatais – principalmente de forma “irracional” de acordo com os interesses de cooptar movimentos sociais, base eleitoral, etc. – a situação seria menos grave e o remédio menos amargo. A razão disso se encontra na dinâmica dos governos petistas e nos seus interesses (isso já foi bastante abordado nesse blog e por isso basta ver esse texto: Ascensão e Queda do PT).

Os governos anteriores, devido ao neoliberalismo neopopulista, conseguiram relativo sucesso no período de estabilização da acumulação capitalista. A estabilidade financeira e política, as políticas de cooptação, as políticas segmentares, entre outros processos, conseguiu se manter por um período de tempo. No entanto, quando o ciclo do regime de acumulação entra em sua fase de desestabilização (a este respeito veja: O Ciclo dos Regimes de Acumulação) eles demonstraram sua incompetência e incapacidade de governar. Um governo neopopulista num período de descenso da acumulação de capital deve corroer suas próprias bases.

O atual governo vinha com a promessa que resolveria os problemas agravados pelos governos anteriores. No entanto, além de não ter formado uma equipe à altura de tal tarefa, acabou se perdendo nos conchavos políticos e outros problemas, e os seus pontos favoráveis, na perspectiva burguesa, começaram a perder fôlego. Esse é o caso da imagem e confiança do país, que não melhorou devido as problemas já aludidos. É nesse contexto que emerge o discurso demagógico do bloco progressista.
Esse discurso demagógico é politicista (para lembrar termo utilizado amplamente por José Chasin para se referir ao caso brasileiro). Ele reduz a realidade apenas ao aspecto político. O politicismo é útil a todos que estão na oposição ao governo, pois ao reduzir tudo ao político, permite culpabilizar o governo, a “situação”, e assim se colocar como a salvação da pátria. A receita demagógica é simples: “não aceitemos as propostas do governo e pronto”. E a solução do problema que a proposta supostamente vem resolver? “Não há problema, ou o problema é o governo, basta votar em nós nas próximas eleições e tudo estará resolvido”. A irresponsabilidade do governo é complementada pela irresponsabilidade da oposição. Aqui poderíamos lembrar Jô Soares, em época de programa de humor: que país é esse?

Esse discurso demagógico é convincente, pois é simples e fácil. Além disso, move milhares de interesses, principalmente nos meios intelectualizados. Sem dúvida, a PEC 241/55 vai atingir a educação e a saúde. Isso é verdade. Mas também não deixa de ser verdade que os gastos com educação durante os governos anteriores (petistas) não foram para a melhoria da educação. Basta ver a expansão desordenada de Institutos Federais de Educação (sua transformação em institutos federais já sinaliza para algo). Um dos objetivos de tal expansão era formar uma base eleitoral e fixa para os governos petistas, que queriam ser vitalícios. A expansão desordenada se deu por incompetência, mas fundamentalmente por interesses político-partidários (aliás, é uma réplica do que fez o Governador de Goiás, Marconi Perillo, com a Universidade Estadual de Goiás e a lição é clara: conservadores copiam progressistas e progressistas copiam conservadores). Existem IFs que não se sustentam, com poucos alunos, não atendendo demanda ou necessidade da sociedade. Isso não quer dizer que os IFs em geral sejam problemáticos, mas sim sua expansão desordenada e os custos que isso traz, bem como os interesses envolvidos. Isso mostra que existe um problema com os gastos estatais. No entanto, é apenas um exemplo entre inúmeros outros. Elevam-se os gastos e grande parte deles desnecessários. Isso, por sua vez, mobiliza aqueles que estão nessas instituições para defender os seus interesses, que entram em contradição com as propostas governamentais.

Esse discurso não analisa a realidade e o problema. Se esconde dele, com raríssimas exceções e com pouco realismo, quando ocorre. Não fazer isso levaria, forçosamente, a apresentar uma solução alternativa. E isso poderia ser retirar de um lado para não retirar de outro, ou seja, apresentar onde os gastos estatais poderiam ser diminuídos. Ou então a proposta impopular de aumentar a arrecadação (impostos, principalmente). Ou ambas as coisas. Porém, isso seria se posicionar e o discurso demagógico é de oposição e não de posição. A única posição da oposição é a própria oposição.

A conclusão disso tudo é que, então, o discurso técnico do bloco dominante está correto? A resposta é negativa, pois ele também é um discurso falso e que deve ser desmascarado. Esse é o nosso próximo passo.

CRÍTICA AO DISCURSO TÉCNICO DO BLOCO DOMINANTE

O discurso técnico do bloco dominante, expresso principalmente através da burocracia governamental, aponta para a necessidade da PEC 241/55. O discurso técnico se apresenta como “neutro” e “objetivo” e assim mascara o seu profundo caráter axiológico e, muitas vezes, ideológico. O governo possui a capacidade de gerar uma corrente predominante de opinião que atrai a atenção para determinados temas e problemas e a desvia de outros, não permitindo a emergência de um pensamento crítico ao seu respeito ou a compreensão de outros problemas mais graves (veja: HABERMAS, J. Ciência e Técnica como Ideologia. Lisboa: Edições 70, 1988).

O discurso técnico com sua aparência neutra e objetiva serve para legitimar e justificar as ações governamentais e, assim, aparentar racionalidade que no fundo esconde um fatalismo. As reformas são necessárias e não há como escapar delas. Essas reformas são, no caos em questão, as políticas de austeridade, entre elas a PEC 241/55. O problema é apresentado, os fatores envolvidos são elencados, a solução é apresentada. O discurso técnico, no caso da proposta de PEC 241/55, é o político-administrativo e econômico. No fundo, o governo mostra o cálculo mercantil, uma imposição real no interior da sociedade capitalista e que realmente não há como fugir dele (esse é o momento de verdade dessa ideologia): não se pode gastar mais do que se arrecada. E isso é reforçado pela crise e pela expectativa de arrecadação e gastos futuros. O problema é grave e necessita de uma solução. A solução, nesse formulação quase matemática, é ou aumentar a arrecadação (mais impostos) ou diminuir os gastos. A opção é pela última.

O cálculo mercantil é uma necessidade para o aparato estatal, tal como diz o discurso governamental. No entanto, ele não é o mesmo para um indivíduo ou uma família (unidade doméstica) e para o aparato estatal (sobre isso veja: VIANA, Nildo. A Mercantilização das Relações Sociais. Rio de Janeiro: Ar Editora, 2016). Alguns adeptos do discurso técnico mostram bem o que é o cálculo mercantil, mas falseiam a realidade ao comparar e transpor o exemplo familiar para o estatal. As famílias, geralmente, possuem como renda a soma dos salários dos seus integrantes e as despesas dos mesmos. O aparato estatal tem uma fonte de renda muito mais variada e complexa, bem como seus gastos. Além disso, os conflitos de interesses e disputa pela repartição da renda estatal não tem equivalente numa unidade doméstica. Assim, o exemplo serve apenas para mostrar uma semelhança básica em seu nível mais simples e não no nível mais concreto, onde reina a diferença. Esse reducionismo aparece com o objetivo de convencer da necessidade das políticas de austeridade.

O discurso técnico tem uma outra característica: ao se fantasiar de neutro e objetivo, fica implícito que ele expressa os interesses de todos. Ele falseia a realidade ao criar uma homogeneidade de interesses que não existe efetivamente. As reformas são necessárias e são para o bem da “nação”, como se essa não fosse dividida em classes e subdividida numa escala quase infinita. É por isso que alguns reprodutores do discurso técnico favorável às políticas de austeridade se referem ao “Brasil”, “nação”, etc.

A grande questão não é o que diz o discurso técnico para justificar e legitimar a PEC 241/55 e sim o que ele esconde. Para saber o que ele esconde é necessário ir além dele. Esse será nosso passo seguinte.

A VERDADEIRA ALTERNATIVA

O discurso técnico do bloco dominante e o discurso demagógico do bloco progressista parecem opostos. No entanto, é uma oposição e não um antagonismo. São duas formas de encarar a desestabilização e desaceleração do ritmo de acumulação de capital. Após apresentarmos e criticarmos estas duas posições, passamos a apresentar a nossa concepção.

A desaceleração do ritmo de acumulação de capital começou a dar os seus primeiros sinais em 2013 e se aprofundou com o passar do tempo, sendo que as políticas do Governo Dilma agravaram ainda mais a questão, pois evitou ações governamentais impopulares (e que prejudicariam os resultados eleitorais de 2014) e no ano seguinte mostrou inoperância, em parte por incompetência e em parte por causa do projeto de se manter no poder e manter o neopopulismo. Assim, o “crescimento econômico” (acumulação de capital) desacelerou, ocorreu um aprofundamento da crise de legitimidade (que se agravou a partir das manifestações de 2013 e se ampliou após as eleições de 2014 e denúncias posteriores de corrupção) que gerou uma crise de governabilidade. Nesse contexto, o impeachment de Dilma Roussef aparecia como a chance de mudar de rota e retomar o ritmo de acumulação de capital. O governo foi, paulatinamente perdendo apoios e se isolando, bem como não conseguia superar a crise financeira. Isto, somado a determinados interesses político-partidários, foi suficiente para a mudança governamental.

O Governo Temer tinha a missão de realizar uma “ponte para o futuro”, através de políticas neoliberais não mais neopopulistas e conseguir recuperar a “economia” brasileira. Esse processo parecia tranquilo, pois o novo governo, apesar da previsível oposição do bloco progressista, reforçado pela volta do PT, tinha conseguido aglutinar os setores fundamentais da classe dominante, bem como maioria parlamentar, formada no próprio processo de impeachment. Um outro ponto positivo era que o novo governo, alinhado com os interesses da burguesia nacional e transnacional e sem a ambiguidade eleitoreira do PT, vinha com a promessa de maior confiança e investimento estrangeiro, elemento importante para a recuperação do ritmo de acumulação de capital.

Porém, o Governo Temer foi, aos poucos, decepcionando e mostrando uma inoperância tal qual o governo anterior. Os novos ministérios não foram de experts e grandes nomes como se esperava, a não ser em um ou outro caso. A escolha de Henrique Meirelles para Ministro da Fazenda foi bem vista por muitos, mas revelava um problema oculto: a falta de criatividade e originalidade do novo governo. Escolher um colaborador do governo Lula (foi presidente do Banco do Brasil, com status de ministro, durante oito anos) mostra que a intenção seria resolver a crise do regime de acumulação integral (e do neoliberalismo) com mais políticas neoliberais. No entanto, as políticas neoliberais devem se ajustar ao desenvolvimento do regime de acumulação integral e não se repetir em qualquer situação. O neoliberalismo que emergiu nesse contexto foi inflexível e marca a sua forma quando se depara com a desestabilização do regime de acumulação integral. Nesse contexto, emerge um neoliberalismo discricionário que busca ampliar o caráter neoliberal e suspender políticas de assistência social, direitos trabalhistas, etc.

O resultado do neoliberalismo discricionário é aumento da pobreza e da exploração. Esse é um dos objetivos e foi assim que ele se desenvolveu em alguns países, como a Grécia (veja: http://resistir.info/grecia/polychroniou_mar13.html, pois, apesar de alguns equívocos, esse texto aponta para alguns elementos dessa forma de neoliberalismo e suas consequências no caso grego). No entanto, este objetivo não é um fim em si mesmo, pois o objetivo fundamental e final é retomar o ritmo de acumulação de capital. O objetivo fundamental raramente se concretiza. No caso brasileiro, a PEC 241/55 e as políticas de austeridade em geral tendem a surtir o mesmo efeito. A razão para a insistência no neoliberalismo discricionário não é devido aos seus resultados e sim, por um lado, ao apego às receitas neoliberais e falta de uma alternativa real ao atual quadro do regime de acumulação integral e, por outro, aos interesses do capital transnacional. Aqui fica claro que as políticas de austeridade são as soluções apresentadas da perspectiva da classe capitalista e que é defendida por alguns em parte por causa da ideologia neoliberal e sua força de convencimento junto com falta de alternativa. Contudo, para outros, especialmente os organismos internacionais e capital transnacional (seguindo os interesses dos países imperialistas), é uma forma de aumentar a transferência de mais-valor, ou seja, a exploração internacional. Os problemas sociais, instabilidade política, pobreza, etc., não atinge o capital transnacional. O que o atinge é a diminuição do consumo e alguns outros elementos que promove o não aumento do investimento, mas permite uma taxa de exploração elevada e remessa de parte dela para os países de capitalismo imperialista.

As políticas de austeridade não conseguem retomar o ritmo da acumulação de capital por suas contradições e pelo motivo que teria que ser acompanhada de outras mudanças nas políticas estatais (política financeira, política industrial, etc.). Essas políticas deveriam já ter sido alteradas e não foram, o que promove o descrédito do atual governo por falta de resultados, corroendo um dos seus pilares de sustentação: a confiança e o apoio de parte da classe capitalista. Sem dúvida, outras soluções poderiam ser tentadas na perspectiva da classe capitalista, como, por exemplo, o aumento da inflação e dos juros. Essa foi uma das estratégias utilizadas nos anos 1970, quando o regime de acumulação conjugado (anterior ao atual) tentou solucionar sua crise sem alterar o regime de acumulação.

Por fim, as políticas de austeridade só podem surtir algum efeito, da perspectiva do bloco dominante, se for acompanhada por outras políticas estatais que atuem sobre o processo de produção da riqueza. A diminuição dos gastos estatais se insere num processo que não atinge a produção de riqueza material. No âmbito estatal e nas relações de distribuição, o que temos é valor estacionário, ou seja, repartição do mais-valor e distribuição/redistribuição de renda e não reprodução ampliada do capital. O PIB é um medidor inexato desse processo, pois não calcula a produção de mais-valor. Apesar disso, o não crescimento ou diminuição do PIB é um indício[2] de que a acumulação de capital está desacelerando. A questão fundamental é o aumento da produção de mais-valor, a reprodução ampliada do capital. As políticas de austeridade são insuficientes para conseguir isso e ainda cria um obstáculo, que é a diminuição da renda e consumo, sendo isto um elemento desacelerador da acumulação de capital.

Em síntese, o que o discurso técnico do bloco dominante esconde é que as políticas de austeridade são a solução para a classe capitalista (especialmente para o capital transnacional) e não para o conjunto da população e que é limitada e geradora de outros problemas mesmo para tal classe. Ela, para ter maior eficácia, precisaria ser acompanhada de outras políticas (financeira, industrial, agrícola, etc.), o que, no entanto, só seria possível com alta dose de competência, criatividade e sair do receituário neoliberal.

As políticas de austeridade, no entanto, tal como a PEC 241/55, são problemáticas pela sua estruturação, a começar pela longevidade (20 anos, no caso da PEC 55). Claro que isso visa diminuir os gastos estatais e os problemas financeiros do aparato estatal, bem como impedir que novos governos neopopulistas, visando se manter no poder, aumentem os gastos além do que está na lei.

Mas não é apenas o discurso técnico do bloco dominante que esconde o principal. O discurso demagógico do bloco progressista também realiza o mesmo processo. O que ele esconde? Como já colocamos, ele não apresenta nenhuma alternativa. O bloco progressista é composto, basicamente, pelas classes auxiliares da burguesia, e por isso sua autonomia é muito restrita e elas são incapazes de romper com o modo de produção capitalista. O seu dilema é justamente esse: deve ser oposição, mas não tem alternativas reais para apresentar. Por isso o discurso do bloco progressista é demagógico. Chegando ao governo, faria as mesmas políticas que hoje questiona. Aliás, as políticas do Governo Temer já vinham sendo implementadas (timidamente, por causa do neopopulismo e processo eleitoral) por Dilma Roussef e se ela tivesse continuado no governo, avançaria nesse sentido ou então deixaria a situação mais descontrolada ainda, gerando novas contradições e transformando a desestabilização em crise. Mesmo a ala mais extremista do bloco progressista, que é mais autônoma, não aparece com nenhum projeto alternativo e nem sequer ergue a bandeira da revolução. O caso grego é novamente exemplar: o revezamento entre conservadores e socialistas no governo foi superado pela emergência do Syriza, que era esperança de rompimento com o neoliberalismo devido seu caráter supostamente mais “radical” e mais “esquerdista”. No entanto, uma vez no poder, seguiu a cartilha neoliberal.

O que o discurso demagógico do bloco progressista esconde (especialmente o PT, mas também os demais partidos de esquerda) é que eles não possuem alternativas e apenas usam as políticas de austeridade para combater o atual governo e tentar retornar ao aparato estatal. A sua incapacidade de oferecer uma alternativa, por sua vez, é gerada por seu vínculo com o capitalismo, pois não propõem superá-lo e por isso deve governá-lo, quando consegue ascender ao poder, e por isso não se difere radicalmente dos partidos e projetos do bloco dominante.

Existe alguma alternativa às políticas de austeridade? A PEC 241/55, bem como a reforma da previdência são inevitáveis? Na verdade, não existe nenhuma alternativa radical ao que está sendo proposto. O que poderia ser feito, por um governo competente e que quisesse evitar o processo de redução drástica dos gastos estatais, seria diminuir o desperdício, a corrupção, etc. e alguns gastos estatais em setores em substituição de outros, bem como uma política de retomada do ritmo acelerado de acumulação de capital, sendo este bem mais difícil e com pouca possibilidade de sucesso imediato. Claro que isso deveria ser acompanhado com outras mudanças nas políticas estatais.

Isso significaria romper parcialmente com as políticas neoliberais, ou seja, romper com o neoliberalismo discricionário. Contudo, não basta competência para isso. Seria necessário convencer a classe dominante de que este caminho seria possível e obter o mínimo de apoio popular. Interesses poderosos teriam que ser removidos, especialmente os do capital transnacional. Assim, além de um governo extremamente competente (algo quase impossível no Brasil atual), seria necessário articular politicamente para que uma proposta alternativa fosse apoiada por quem detém o poder financeiro. Os resultados disso, no entanto, seriam um impacto menor do que está previsto com as políticas de austeridade (que, aliás, é exagerado pelo bloco progressista), mas que estaria fadada ao fracasso se não conseguir realizar a retomada do ritmo de acumulação.

Uma solução mais fácil e rápida seria o foco não em políticas de austeridade (que poderiam ser reduzidas para evitar impopularidade do governo por causa delas) e sim em arrocho salarial e aumento da taxa de exploração. Obviamente que esse caminho é, geralmente evitado, pois corre o risco de colocar na cena política o mais velho e perigoso inimigo: o proletariado. A classe dominante há muito tempo evita um ataque direto aos trabalhadores em geral e ao proletariado, mais especificamente. Isso faz parte do plano, mas sob forma que se torne pouco perceptível, sendo realizado gradualmente, indiretamente e setorialmente. Obviamente que isso cria uma morosidade no processo e na retomada do ritmo de acumulação de capital.

Em síntese, este é o quadro atual da sociedade brasileira. O bloco dominante apresenta seu discurso técnico e propõe políticas de austeridade, enquanto que o bloco progressista lança mão do discurso demagógico e não propõe nada. As alternativas são variações das políticas neoliberais que nem sequer estão sendo apresentadas. Existe uma alternativa mais substancial? Existe, mas nem o bloco dominante e nem o bloco progressista tem interesse nela. A única alternativa possível é a partir da perspectiva do proletariado, que ao invés de querer salvar o moribundo capitalismo aponta para sua destruição. O discurso técnico do bloco dominante tem seus momentos de verdade e um deles é que o aparato estatal não pode gastar mais do que arrecada, sem que isso traga consequências nefastas, especialmente para as classes desprivilegiadas, mas também para diversos extratos das classes auxiliares da burguesia. Outra verdade do discurso técnico do bloco dominante é que é preciso retomar o “crescimento econômico” (ritmo de acumulação de capital) e isso significa mais produção e/ou mais exploração. A grande verdade do discurso técnico do bloco dominante, que não é explicitado com as palavras corretas, é que só é possível a sociedade capitalista se reproduzir aumentando a exploração e isso, no atual momento, tem como forma de concretização as políticas neoliberais discricionárias, incluindo as políticas de austeridade. E, portanto, o discurso técnico acaba levando-nos a conclusão de que no interior do capitalismo não há solução para as classes desprivilegiadas, apenas para a classe dominante.

A única alternativa para evitar tais políticas de austeridade, incluindo a PEC 241/55, é a superação do capitalismo. As pequenas variações das políticas estatais e um pouco mais ou um pouco menos de austeridade, pobreza, violência, desemprego, etc., é o que se apresenta no horizonte. Além do horizonte, no entanto, é possível pensar uma nova sociedade, fundada na autogestão social. Na sociedade autogerida, esses problemas nem sequer existiriam, pois suas bases também não existiriam. O problema dos idosos, por exemplo, não existiria, pois a forma de organização da nova sociedade reintroduz o idoso na sociedade. Uma sociedade autogerida não se fundamenta na busca do lucro, o que gera a valoração apenas da força de trabalho ativa. A sociedade autogerida é voltada para as necessidades humanas e cria relações comunais e igualitárias na qual não ocorre o afastamento dos indivíduos por não estarem no trabalho ativo. Nesse caso, não existe Previdência e nem aparato estatal para cuidar daquilo que seria responsabilidade das famílias, sendo que estas teriam, na nova sociedade, capacidade de cuidar adequadamente dos idosos.

E como chegar a esta nova sociedade? A desestabilização do atual regime de acumulação aponta para uma maior possibilidade de se pensar a transformação radical e total das relações sociais. Aumenta o grau de engajamento da população, a esperança, o processo de luta que reforça essa tendência, uma maior receptividade da cultura revolucionária. Um dos obstáculos que faz com que esse processo fique mais lento é o bloco progressista, pois este se apresenta como uma alternativa. O discurso da alternativa é a alternativa do discurso incapaz de ser uma real alternativa. E é por isso que o bloco progressista não apresenta projetos e propostas e sim nomes e partidos. Nada de novo no horizonte político. O problema é que o bloco progressista ainda consegue aglutinar setores da sociedade. O bloco progressista é heterogêneo, indo daqueles que são meros oportunistas querendo o poder e usufruir dos privilégios advindos do mesmo, até aqueles sinceros opositores sem maior percepção da totalidade e da incapacidade de resolução dos problemas sem atacar as raízes. Apesar de sua heterogeneidade, o bloco progressista (ou a “esquerda”) não é parte da solução e sim do problema.

As manifestações de 2013, bem como as ocupações de escolas (aquelas do ano passado e deste ano, desconsiderando as que eram organizadas ou influenciadas pelos partidos e organizações progressistas), são um embrião do que pode gerar uma luta mais ampla pela transformação radical e total das relações sociais. Assim, a proliferação de formas de auto-organização e autoformação são fundamentais e reforçam a tendência de transformação social. É preciso avançar na luta cultural, pois, sem essa, dificilmente haverá sedimentação das lutas e seu fortalecimento para as lutas futuras. A crítica do capitalismo deve ser acompanhada pela crítica da burocracia e do progressismo. O descontentamento é muito mais amplo e atinge vários outros setores da sociedade, especialmente nas classes desprivilegiadas. Essas, que parcialmente se manifestam via estudantes secundaristas, tendem a emergir na luta e quando isto ocorrer a possibilidade de transformação se torna real.

Por conseguinte, o fundamental hoje é abrir duas frentes de ação: a luta cultural no sentido de ampliar o bloco revolucionário e a força das lutas anticapitalistas e o desenvolvimento da luta direta, formas de auto-organização e autoformação, fundamentais para que haja uma ascensão e sedimentação das lutas revolucionárias. Uma terceira frente é corroer a influência do bloco progressista, seu aparelhamento de movimentos sociais, seu discurso demagógico, seu moralismo, etc. A decisão final sobre isso se revela na luta de classes e, no interior desta, torna-se importante a ação do bloco revolucionário no sentido de fortalecer a luta das classes desprivilegiadas em geral e a do proletariado em particular. A superação dos problemas gerados pelo capitalismo pressupõe a superação da sociedade capitalista. A superação da sociedade capitalista, por sua vez, pressupõe a superação da hegemonia burguesa e burocrática e instauração de uma hegemonia proletária.






[1] Proposta de Emenda Constitucional. É uma proposta de alterações parciais (“emendas”) na Constituição Federal, no caso brasileiro, a última, que é a de 1988.

[2] E não passa de um indício, pois várias determinações podem ocultar isso. O ritmo de acumulação de capital pode estar elevado, mas se o valor estacionário (sobre isso consulte A Mercantilização das Relações Sociais) tem pontos em que os indivíduos começam a poupar ou deixar de investir em capital improdutivo, então a impressão será diferente do que ocorre efetivamente. Da mesma forma, o PIB pode crescer sem que haja aceleração da acumulação capitalista, seja através de investimentos estatais (inclusive oriundos de empréstimos internacionais), ou qualquer outra forma.

domingo, 2 de outubro de 2016

Eleições, Voto Nulo e Autoemancipação



Eleições, Voto Nulo e Autoemancipação

Nildo Viana

A emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores. Esta é uma das frases mais célebres de Karl Marx e sua veracidade foi provada em diversos momentos históricos e em nossa vida cotidiana. Aí está contido a ideia da automancipação proletária, também defendida por Bakunin, Rosa Luxemburgo, Pannekoek e vários outros pensadores revolucionários. É justamente isso que distingue o pensamento revolucionário proletário das demais formas de pensamento.
A ideia-chave é a da automancipação proletária. A grande questão é como se realiza esta autoemancipação. Para Marx, Rosa Luxemburgo e outros, é através da própria luta da classe proletária que se constitui o processo de autoemancipação. Para se chegar a um determinado objetivo, é necessário utilizar os meios que possibilitam chegar a ele, ou seja, é fundamental a unidade entre meios e fins, tal como destacou Rosa Luxemburgo. Isso é o que se vê no diálogo entre o Mestre Gato e Alice, em Alice no País das Maravilhas. Alice, diante de três estradas, pergunta: “Qual caminho devo seguir?” O Mestre Gato responde: “Aonde você quer ir?” E a resposta é: “Para qualquer lugar”. O Mestre Gato diz: “Então escolha qualquer caminho”. Se não há objetivo, qualquer caminho serve, mas se alguém quer chegar a um lugar definido, então necessita escolher o caminho que possibilita chegar até lá.
É nesse contexto que se coloca a questão da autoemancipação e dos caminhos para se chegar a ela. Ao mesmo tempo, se coloca a questão do processo eleitoral e da participação da população no mesmo. Até que ponto as eleições podem promover uma contribuição para a emancipação humana ou para a melhoria das condições de vida dos trabalhadores e demais classes exploradas e grupos oprimidos. Aqui temos um caminho e todo caminho leva a algum lugar. Sendo assim, a escolha do caminho significa a escolha do lugar aonde se quer chegar e, nesse sentido, é importante discutir ao lugar que leva o caminho eleitoral. Como o caminho eleitoral parece não levar a lugar algum, então é preciso iniciar por este para depois observar qual é o caminho necessário para se chegar ao lugar que queremos, a libertação humana.
Processo Eleitoral e Luta de Classes
O processo eleitoral não é algo simples, ou seja, não é apenas o ato de votar no dia da eleição. Em primeiro lugar, o processo eleitoral é marcado por um rígido controle estatal. O estado, através da legislação eleitoral, dos procedimentos burocráticos, da interferência de suas instâncias (jurídicas, políticas, etc.) produz um conjunto de regras para o jogo eleitoral. Entre essas regras, cabe destaque ao papel mediador do partido político (Viana, 1993a; Viana, 1993b). Os partidos políticos são os meios pelos quais os indivíduos devem se submeter para lançar sua candidatura. Somente através da participação num partido político é que o indivíduo pode se lançar candidato e isso também não é algo simples, ele precisa conseguir ser escolhido para ser candidato, e, quanto mais elevado é o cargo para o qual quer se candidatar, mas difícil é e mais poder é preciso ter no interior do partido para conseguir a indicação.
Este processo parece inocente, mas nada tem de inocente. O estado capitalista não é uma instituição neutra que visa representar ou expressar os desejos e interesses da população. Apenas nas ficções liberais isso tem sentido, mas não nas relações sociais concretas. O estado representa os interesses da classe dominante, ou seja, da classe capitalista. Também expressa, relativamente, os interesses das classes auxiliares da burguesia, especialmente da burocracia estatal, e, assim, executa o papel de reproduzir as relações de produção capitalistas.
Da mesma forma, os partidos políticos não são instituições neutras que representam o “povo” ou os trabalhadores e sim os interesses de determinadas classes sociais, fundamentalmente a classe dominante ou alguma de suas classes auxiliares, dependendo do partido (Viana, 1993a). As classes exploradas não possuem partidos políticos, pois mesmo aqueles que dizem representar os trabalhadores e/ou possuem um grande número de trabalhadores no seu interior, representam os interesses da classe que possui a direção e hegemonia no partido, geralmente a burocracia partidária e a intelectualidade.
Assim, o estado constitui e controla o processo eleitoral visando que ele sirva ao processo de reprodução das relações de produção capitalistas, e os partidos políticos fazem o mesmo, com a diferença que disputam para assumir o governo e fazer parte do bloco dominante. As lutas dos trabalhadores podem pressionar as ações estatais, mas não pode conquistá-lo e nem usá-lo como quiser, tal como afirmam alguns ideólogos, pois o Estado tem, como essência, a relação de dominação, é a parte dominante de uma relação social concreta e por isso serve à classe dominante. Através do estado, no máximo se trocaria os indivíduos no governo ou a classe que domina, mas jamais seria possível a emancipação humana ou a libertação dos trabalhadores, duas faces da mesma moeda.
Assim, tanto quem coordena o processo eleitoral como quem está na disputa, possuem o mesmo objetivo de realizar a reprodução das relações de produção capitalistas. O estado organiza o processo eleitoral através da disputa eleitoral e partidária e toda uma legislação vem para promover um processo de burocratização e manutenção dos partidos mais conservadores no poder. As exigências legais para a legalização de um partido, para que haja uma candidatura (além de ter que estar subordinada a um partido, existem critérios como idade para concorrer a determinados cargos, residência no local onde se candidata por um determinado período, etc.). Os partidos também realizam processos internos de controle e assim a burocracia partidária acaba tendo hegemonia nos partidos de esquerda e os grandes políticos profissionais ou burgueses dominam os partidos conservadores. A legislação também atinge os partidos e limita sua liberdade de ação.
Porém, o processo eleitoral ainda tem vários outros aspectos que fazem com que as eleições não levem a lugar algum. A própria eleição promove uma situação que é de reforçar as relações de produção capitalistas. Isso ocorre de uma forma que podemos colocar da seguinte forma: a organização estatal e partidária impede qualquer forma de oposição radical no processo eleitoral e, além disso, promove um processo de mistificação e de legitimação do capitalismo, por um lado, e, um processo de cooptação e corrupção, por outro. O processo de oposição radical no interior do processo eleitoral sempre foi difícil, devido ao processo de corrupção e burocratização dos partidos ligados ao movimento operário, mas com o passar do tempo, a democracia representativa se torna cada vez mais conservadora (Viana, 1993b) e cada vez mais a oposição se torna mais domesticada e sem a menor capacidade de apresentar um programa revolucionário, a não ser como mera propaganda mal feita.
O processo de mistificação ocorre com a ilusão eleitoral. A eleição é um processo no qual o eleitor escolhe no mercado eleitoral aqueles que irão governá-lo, ou seja, impor suas decisões, ao contrário do que prega a própria ideologia eleitoral, que é a falsa tese de que “o poder emana do povo”. O eleitor ao eleger um candidato, perde todo o poder, o seu suposto poder de decisão é apenas no momento do voto, no qual escolheria os candidatos. Parafraseando Marx, quanto mais o eleitor se fia no voto, menos tem de si mesmo. Porém, uma vez eleito, o candidato passa a ter autonomia e não se submete a nenhum controle dos eleitores. De pedinte de voto passa a ser o senhor do eleitor, que passa, tão logo acabe a eleição, de senhor a servo.
A ilusão de escolha e decisão e de que isso terá algum retorno para ele ou para a população pode persistir por algum tempo, mesmo porque o ato do voto cria um vínculo psíquico entre o eleitor e o eleito, caracterizado por um processo de esperança e orgulho próprio que faz com que o votante não queira ou demore muito para admitir que o candidato que ele elegeu não realizará suas promessas, não concretizará nada que se esperava dele. O vínculo psíquico entre eleitor e eleito pode durar muito tempo e racionalizações como as de que é preciso tempo para que consiga fazer algo são comuns e mostram a dificuldade do eleitor de se desvincular do eleito. Isso reforça o efeito ilusório do processo eleitoral, que, mesmo superado, ainda não é considerado com um erro momentâneo, apenas uma escolha errada e por isso ainda haverá o candidato ou partido que realizará a sua redenção ou pelo menos irá melhorar suas condições de vida.
Porém, esse vínculo psíquico não é apenas entre eleitor e candidato eleito, mas também pode se manifestar como vínculo entre grupos de eleitores, cuja crença e preferência comum criam uma comunidade ilusória e reforço recíproco, criando um círculo ilusório de crenças que muitas vezes são marcadas por uma extrema irracionalidade, assemelhando-se aos efeitos do futebol (Viana, 2010). As esperanças e crenças em determinados partidos ou candidatos podem promover uma vinculação muito forte entre setores da população e candidatos, gerando, no momento da vitória, uma pseudestesia (falsa sensação) coletiva de alegria[1], que perdura por algum tempo. Essa esperança e crença também tem uma duração mesmo depois do partido ou candidato chegar ao poder estatal ou ser eleito, quando as promessas e propostas não se concretizam e/ou se mostram insuficientes para resolver os problemas sociais mais urgentes da população. A sociabilidade capitalista e a competição promovem uma forte adesão a determinados candidatos e a vontade de sua vitória eleitoral, inclusive sendo a justificativa para a escolha do candidato, o que está na frente nas pesquisas eleitorais, o que é amplamente utilizado por várias siglas partidárias. Da mesma forma, a pseudestesia provocada pela vitória eleitoral do candidato, cria outro vínculo irracional e a fidelidade que se prolonga durante grande parte do mandato, reforçando e obliterando o senso crítico dos eleitores mais envolvidos com o processo eleitoral.
A legitimação se manifesta através das ideologias e representações ilusórias que dizem que os eleitos foram escolhidos pelo “povo” e assim não há nada a fazer, mesmo quando ocorre a decepção com os eleitos, pois somente no próximo “pleito eleitoral” é que isso poderá ser alterado. Isto ocorre desde a ideologia da “vontade geral” ou “vontade coletiva” até chegar às representações ilusórias do voto da maioria. As ações dos políticos profissionais empossados são legítimas porque foram escolhidos pelo voto popular, pela decisão da maioria. Claro que se abstrai todo o processo existente por detrás de tal “escolha”, inclusive que raramente é a maioria que escolhe, se se considerar apenas os eleitores, e nunca ocorre, se se considerar o conjunto da população, ou seja, se incluir os não-votantes (não-eleitores, abstenções, voto nulo e branco) e os que votam nos candidatos derrotados. O processo eleitoral ocorre dentro da legalidade e da vontade popular e, por isso, não pode ser questionado, o que se pode fazer é esperar a próxima eleição e os novos eleitos.
Os intelectuais cumprem um papel importante para reforçar essa legitimação através de várias ideologias e justificativas do processo eleitoral. Desde os discursos falaciosos da cidadania, da vontade popular, da democracia, até justificativas com uma percepção supostamente mais crítica da realidade, tal como aqueles que apelam para uma pretensa “ameaça fascista” para garantir a reprodução do processo eleitoral ou então o que dizem que a participação é necessária para fazer o parlamento de tribuna revolucionária, o que nunca se efetivou concretamente em nenhum lugar do mundo.
Por fim, temos o processo de cooptação e corrupção que sempre ocorre nos processos eleitorais. Além da prática cotidiana de cooptação e corrupção realizada por governos e partidos políticos, através de cargos, favores, etc., temos também a corrupção eleitoral, tanto financeira, quanto as promessas de cargos, favores e benefícios. Os alvos principais são os indivíduos que potencialmente podem angariar mais votos devido sua posição junto a setores da população. É isso que torna militantes estudantis, ativistas comunitários e de movimentos sociais, sindicalistas e membros de associação de bairros, entre outros, o alvo principal dos partidos e candidatos. Da mesma forma, os cooptados e corrompidos são futuros reprodutores do processo de cooptação e corrupção. O processo eleitoral é uma verdadeira escola de manipulação e corrupção e uma fábrica de políticos profissionais, quando o demônio compra sua alma com seu dinheiro sujo.
A mercantilização das relações sociais está presentes nas eleições e na corrupção eleitoral. A venda do voto pode ser considerada uma “corrupção do eleitor”. A corrupção é uma relação social no qual há o corruptor e o corrompido. O corruptor é o que corrompe, suborna, oferece dinheiro em troca de algo, que, no caso, é o voto. Do lado do corruptor, há o dinheiro e o desejo de consumo da mercadoria chamado voto e do lado do corrompido, há o desejo de algo em troca, que é uma mercadoria ou a possibilidade de aquisição de mercadorias. Só existe a venda do voto por existir a oferta e a procura e, no caso, a procura precede a oferta, pois só havendo procura poderá haver oferta.
Do lado do corruptor, isso ocorre devido sua ambição e ânsia pelo poder e tudo que está relacionado a isso. Do lado do corrompido, isso ocorre por vários motivos. O eleitor corrompido entende o ato eleitoral como sem sentido, como algo que não envolve sua vida cotidiana, que não produz mudanças. A percepção disso ocorre pela experiência cotidiana do votante, pois entra ano e sai ano, entra governo e sai governo e nada em sua vida muda. Assim, o não-significado do voto é razão para sua desvaloração cultural e que deve passar a ter alguma utilidade. Tendo em vista que vivemos numa sociedade que realiza a mercantilização das relações sociais em todos os níveis e tudo é transformado em mercadoria, o eleitor vê, na proposta de venda a efetiva oportunidade de venda, a possibilidade de ter algum retorno com o voto. Ele pode ser útil e qualquer coisa que se consiga por ele é “lucro”.
Um terceiro elemento que ajuda a explicar a venda do voto é o processo de corrupção existente na sociedade e política brasileira, desde o genérico “jeitinho brasileiro” até as diversas denúncias de corrupção tanto no poder executivo quanto no legislativo, a percepção dos políticos profissionais no Brasil é bastante negativa e muitas vezes eles são vistos como sinônimo de corruptos. Sendo a política um festival de corrupção, então vender o voto é algo dentro da normalidade política brasileira. A desilusão eleitoral é reforçada pela corrupção estatal existente.
Porém, como o voto é secreto, o que se vende, no fundo, não é o voto, mas a promessa do voto, que nem sempre se cumpre por ele ser secreto e por que alguns eleitores entendem que tal venda é um motivo para não se votar no candidato comprador de votos. Assim como o candidato corrupto promete e não cumpre, o eleitor corrompido também o faz. Porém, o elemento ativo nesse processo é o corruptor, aquele que quer comprar o voto, sem o qual a transação não ocorreria.
No entanto, o processo eleitoral não ocorre apenas através da relação entre eleitores e candidatos, ou seja, entre indivíduos, pois estes são seres humanos concretos, e por isso não é possível deixar de lado a luta de classes nesse contexto. Grande parte da população apresenta uma desilusão com as eleições e a democracia representativa, outra parte é cética, e isto é derivado, em parte, das experiências eleitorais passadas e das desilusões que lhes acompanham, e, em parte, do descontentamento oriundo de uma ampla insatisfação, inclusive de necessidades básicas, e da falta de atendimento destas necessidades, o que atinge mais o lumpemproletariado, o campesinato, o proletariado e algumas outras classes desprivilegiadas.
É por isso que o discurso eleitoral tem que produzir promessas irrealizáveis e oferecer migalhas atrativas para a parte mais descontente da população. Trata-se de uma estratégia da classe dominante ou de suas classes auxiliares para buscar atrair para seu partido a camada enorme de pessoas descontentes e desiludidas, o que é complementado com a busca de corrupção eleitoral, através de oferecimento de benefícios pessoais em troca do voto. Aqui, os elementos da sociabilidade capitalista, como a competição, mercantilização e burocratização das relações sociais (Viana, 2008), são elementos fundamentais para o sucesso da corrupção e cooptação eleitoral. A competição em torno do sucesso, status, poder, riqueza, numa sociedade mercantil, promove a facilidade no processo de corrupção e coloca o processo eleitoral como meio de ascensão social. Alguns indivíduos bem intencionados acabam, devido à predominância da mentalidade burocrática, aderindo aos partidos e muitos se corrompem nesse processo, outros realizam uma ruptura que pode desembocar no imobilismo ou no ativismo antipartidário. Outros são cooptados através do emprego como cabos eleitoras e promessas de emprego permanente após as eleições, caso seu candidato ganhe, além do sonho de alguns em se tornar candidatos.
Porém, os partidos expressam as classes sociais privilegiadas e disputam entre si os cargos e a posição de governo, querendo integrar o bloco dominante. Nesse contexto, o discurso eleitoral tem o objetivo de buscar, a qualquer custo, a vitória. E para isso é preciso atingir o maior número de pessoas e interesses. Os velhos discursos sobre saúde, educação, segurança, etc., apenas revelam essa tentativa de atingir uma grande parte da população, pois essas demandas são visíveis e acessíveis pelas pesquisas de opinião. Daí também o discurso policlassista, onde a classe ou grupos específicos com interesses específicos são substituídos pelo “povo”. Daí vem outra conseqüência, que é a necessidade de propaganda generalizada, atingindo o maior número de pessoas e sob variadas formas, desde a propaganda eleitoral gratuita nos meios oligopolistas de comunicação até a distribuição de panfletos, santinhos, bandeiras, adesivos, e diversas outras formas. Isso tudo produz um discurso despolitizado e despolitizador, que reforça a mistificação eleitoral.
Por isso tudo, o processo eleitoral contribui com a reprodução das relações de produção capitalistas.  Agora já podemos responder a pergunta inicial: para onde leva o processo eleitoral? A resposta é evidente: o caminho eleitoral leva para a reprodução das relações de produção capitalistas, a manutenção do capitalismo, o que significa a reprodução da alienação, da miséria e da desumanização.  Desta forma, é impossível se pensar um caminho para a liberdade através da escravidão. A libertação não pode ocorrer via escravidão, somente através da recusa da escravidão é que a libertação se torna uma possibilidade real. O processo eleitoral é um dos sustentáculos da escravidão moderna, da desumanização e da alienação. Por isso, é necessária a recusa do processo eleitoral, da democracia representativa, dos partidos, do estado e da mediação burocrática instituída por ele. A recusa do processo eleitoral pode se manifestar como abstencionismo ou como voto nulo[2]. É disto que trataremos a seguir.
As Formas do Voto Nulo
O voto nulo ou a abstenção é a opção que alguns indivíduos tomam durante o processo eleitoral. Porém, não se deve pensar que o voto nulo sempre significa a mesma coisa, pois expressa práticas e concepções diferentes. Assim, é fundamental perceber que o voto nulo assume várias formas. Assim, é preciso saber que muitos votam nulo não por vontade ou opção e sim por dificuldade em votar. Esse é o voto nulo involuntário. É o caso daqueles que, quando a eleição era com cédula de papel, tinham dificuldades em escrever o nome/número dos candidatos ou, na urna eletrônica, dificuldade em digitar, seja por falta de habilidade com a escrita ou digitação, seja por esquecer os dados dos candidatos. Porém, o número de votos nulos derivados da inabilidade do votante é relativamente pequeno e os candidatos e governo se esforçam para criar mecanismos de treinamento e sugestões para superar este processo (tal como urnas eletrônicas e simulações de votação e propaganda em TV).
Além dessa forma de voto nulo, que é involuntária, há o voto nulo espontâneo. Essa forma de voto é produto da desilusão e do ceticismo perante o processo eleitoral. O votante não acredita nas eleições, nos candidatos, nos partidos. Essa descrença o faz votar nulo. Assim, o voto nulo espontâneo é um ato fundado na descrença e por isso cumpre o papel de desvincular o votante do candidato e do processo eleitoral como um todo, manifestando-se como uma recusa legítima da farsa eleitoral. Essa recusa aponta para a deslegitimação e desvinculação psíquico dos eleitores com a democracia burguesa e isso é um ponto de partida para o voto nulo engajado numa perspectiva política mais ampla e alternativa. Porém, isso é uma potencialidade que, para se efetivar, é necessário ir além e isso pode ocorrer de forma também espontânea no caso de determinados indivíduos ou de setores da população, desde que haja ascensão das lutas sociais, ou então uma ampla luta cultural que consiga realizar uma crítica da democracia burguesa e permitir uma politização mais rápida no caso de alguns indivíduos ou grupos.
O voto nulo espontâneo, portanto, é revelação da crise de legitimidade do Estado capitalista e de uma politização inicial de setores da população, que traz em si uma grande potencialidade. Aqueles que votam nulo espontaneamente possuem uma potencialidade e tendência de avançar no sentido de uma concepção mais crítica da realidade, embora a descrença também possa ser, em alguns casos, generalizada, o que dificulta a aceitação de uma proposta alternativa, o que é reforçado pela mentalidade dominante (valores, sentimentos, concepções dominantes, que ficam nos marcos da sociedade capitalista, naturalizando-a). No entanto, mesmo nestes casos, uma ampla luta cultural voltada para aprofundar a crítica da democracia burguesa e do capitalismo, por um lado, e para mostrar a necessidade e possibilidades de formas alternativas de ação política com o objetivo de transformação social, pode transformar o voto nulo efetivado por estes indivíduos em voto politizado.
O voto nulo espontâneo pode ser substituído pelo voto nulo politizado. Porém, este último também assume formas diferenciadas, já que sendo politizado, pode ser feito a partir das mais variadas concepções políticas. Embora seja minoritário, é possível que a insatisfação se alie a concepções pouco elaboradas, reflexões superficiais, mescla de representações ilusórias e representações verdadeiras, mentalidade dominante e cultura contestadora, unindo voto nulo e moralismo ou nacionalismo, por exemplo. Porém, isto se deve em parte ao processo geral de despolitização da sociedade capitalista, o que é corroído com a ascensão das lutas dos trabalhadores e lutas sociais em geral. Dentro do voto nulo politizado há o voto nulo oportunista, no qual se une recusa temporária da democracia burguesa (por impossibilidade de participação por determinados pequenos partidos ou organizações aspirantes a partido) e tentativa de recrutar militantes. No entanto, o oportunismo está apenas em quem propõe o voto nulo e não em quem vota nulo a partir da propaganda, pois desconhece suas motivações, a não ser o vínculo com figuras ou pensadores políticos.
O voto nulo politizado é desenvolvido quando se encontra ligado a concepções políticas libertárias, embora haja muita falta de politização e equívocos também neste caso, o que é oriundo da formação cultural e política deficiente de muitos militantes ou de limites de algumas tendências que ainda se ligam a formas organizacionais ultrapassadas (anarcossindicalismo, por exemplo). Esta forma de voto nulo é a forma libertária e pode ser dividido entre semilibertário, devido suas limitações acima aludidas, e o libertário. Assim, o voto nulo libertário é a forma mais avançada de voto nulo quando ultrapassa os limites acima aludidos, pois não só mostra recusa e protesto contra a democracia e sociedade burguesas, como também apresenta um projeto concreto e alternativo de prática política e sociedade.
Há uma forma específica de voto nulo libertário que compartilha os princípios dele, mas que possui algumas especificidades. É o voto nulo autogestionário, que é uma forma de voto nulo libertário, mas que tem como diferencial determinadas propostas específicas. É justamente este voto que abordaremos a seguir.
O Voto Nulo Autogestionário
O voto nulo autogestionário é o que vincula voto nulo e autogestão social. Sem dúvida, muitas tendências anarquistas também fazem o mesmo. Porém, há algumas diferenças e isto será explicitado aqui. A ideia básica do voto nulo autogestionário é explicitado em sua própria denominação, que revela a necessidade de inseparabilidade entre meios e fins, pois autogestionário quer dizer que visa à autogestão social. Assim, se o voto é um meio para a reprodução da sociedade capitalista, então é necessário combatê-lo. Isto se deve ao fato de que não basta garantir a correspondência entre meios e fins, é necessário evitar e combater os meios inadequados de luta e que servem para outras finalidades. Assim, o voto obrigatório e o voto válido devem ser combatidos, assim como toda concepção política que aponte para o processo eleitoral como forma de luta revolucionária. Da mesma forma, algumas formas de voto nulo devem ser superadas por outras, o que significa que a luta pelo voto nulo deve não somente ser uma forma de recusa do voto e das concepções que lhes acompanha, mas também de aprofundamento e radicalização do voto nulo em suas formas não-libertárias.
Assim, a luta pelo voto nulo autogestionário é estratégica, ou seja, tem uma finalidade imediata articulada com o objetivo final que é a autogestão social. Ela busca atingir o conjunto das classes exploradas e grupos oprimidos, bem como a todos os possíveis aliados da luta pela emancipação humana, e, no interior destes, aqueles que possuem uma posição a favor do voto nulo sob formas incipientes, visando colaborar com a superação das suas contradições. Assim, a luta pelo voto nulo assume formas mais sintéticas e de propaganda generalizada, sendo, portanto, mais simples e acessível, e formas mais elaboradas, teóricas, buscando expressar a questão da negação do processo eleitoral com a totalidade das relações sociais, o que remete para a discussão sobre Estado capitalista, democracia burguesa, partidos políticos, políticos profissionais, capital eleitoral (“indústria eleitoral”), ideologia e ideologias políticas, exploração e luta de classes, etc. de forma mais aprofundada. Neste sentido, a luta pelo voto nulo numa perspectiva autogestionária aponta para a propaganda generalizada e para a elaboração teórica, sendo esta última a fonte inspiradora da primeira, que é sua versão mais simples, sintética, acessível.
Outro elemento do voto nulo autogestionário é que não só apresenta uma concepção crítica e totalizante do processo eleitoral como também do próprio voto nulo, de seus limites e formas, ou seja, é uma proposta e prática política fundada na reflexão e não no praticismo, defendido por determinados grupos e tendências. O próprio voto nulo deve ser analisado e ver seus limites como prática e concepção, suas formas de manifestação concreta. Assim, nem todo voto nulo é relevante para uma análise política, caso, por exemplo, ele seja voluntário em grande número de casos. Da mesma forma, o voto nulo despolitizado é um potencial que precisa de se desenvolver, e a luta cultural e pelo voto nulo autogestionário tem um papel fundamental nesse processo. Assim, é necessário refletir sobre as formas e limites do voto nulo e também sobre o próprio voto nulo autogestionário, buscando analisá-lo, compreendê-lo, aperfeiçoá-lo e contribuir, assim, para que ele supere seus possíveis limites e ganhe maior eficácia.
Um terceiro elemento é que além da concepção crítica e totalizante do processo eleitoral e do caráter reflexivo sobre o voto nulo, inclusive o de caráter autogestionário, é fundamental nunca perder de vista, tanto na propaganda generalizada como na elaboração teórica, o vínculo necessário entre voto nulo e autogestão social. Obviamente que, no primeiro caso, isso se dá de forma precária, principalmente dependendo do material (se é um adesivo, por exemplo, não é possível aprofundamento, apenas defesa do voto nulo e vínculo com autogestão social), porém, é necessário sempre utilizar as palavras “voto nulo” e “autogestão social” juntas, pois a negação ganha explicitamente a afirmação que lhe é complementar. O voto nulo não é um objetivo em si mesmo, nem a luta pelo voto nulo[3]. Esta última é parte de uma luta cultural e prática para deslegitimar, desmistificar, corroer o processo eleitoral no sentido de avançar a consciência revolucionária e colocar em evidência um projeto alternativo de sociedade, a autogestão social. Assim, não tem caráter apenas negativo, mas também propositivo. Não votar apenas por não votar, é algo que pode ocorrer concretamente, mas não como objetivo da luta autogestionária. Nesse caso, o vínculo entre voto nulo e autogestão social é fundamental e por isso é importante não só colocar a necessidade de práticas conjuntas ao voto nulo e alternativas (auto-organização, auto-formação), como o sentido e objetivo disso tudo, a revolução proletária, a instauração de uma sociedade radicalmente diferente, a emancipação humana. Um ato tão insignificante como o voto pode ter um significado político radical, ser um momento de colocar em discussão e reflexão a autogestão social, a emancipação humana.
Assim, o fundamental é deixar claro o vínculo entre a luta pelo voto nulo e o próprio voto nulo com a perspectiva do proletariado, a luta pela autogestão social, unindo os dois elementos com propostas práticas e reflexões críticas, pois assim a deslegitimação e desmistificação ganham maior profundidade indo além do próprio ato do voto nulo, bem como o negacionismo puro é superado por uma ação possível e projeto revolucionário.
Nesse sentido, quem opta pelo voto nulo autogestionário faz uma opção pela autoemancipação proletária e humana, ou seja, pela autogestão social. Quanto mais pessoas votarem nulo nessa perspectiva, mais pessoas conscientes estarão defendendo a autogestão social. O significado disso é o aumento de indivíduos e de ações a favor da autogestão, o que torna sua tendência de realização cada vez mais forte. É um passo no caminho da autogestão, embora seja no início da estrada, sem ele os passos seguintes dificilmente serão dados, pois a crença na democracia burguesa e no processo eleitoral é um obstáculo a ser superado. A classe proletária, em seu conjunto, assim como outros setores da população, pode dar um salto e pular etapas, mas isto depende das lutas sociais. Os indivíduos isolados, no entanto, somente através da luta cultural poderiam realizar tal salto. Porém, alguns vão a passos lentos, outros saltam, mas se for na estrada certa, chega-se ao lugar desejado, a autoemancipação humana.

Referências
Viana, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. Rio de Janeiro, Achiamé, 2003b.
Viana, Nildo. Notas Sobre o Significado Político do Futebol. Maringá/PR, Revista Espaço Acadêmico, Ano 10, num. 111, Agosto de 2010.
Viana, Nildo. O Que São Partidos Políticos? Goiânia, Edições Germinal, 2003a.
Viana, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo, Escuta, 2008.




[1] As raízes dessa pseudestesia se encontram na ânsia popular por mudanças, a necessidade de esperança, que todo ser humano carrega no seu íntimo e a vontade de sua materialização, se agarrando muitas vezes à ilusões e soluções fáceis, o que cria um vínculo irracional nas disputas políticas, provocando um envolvimento emocional forte que gera brigas e desentendimentos entre eleitores (tal como também ocorre com o futebol e religião, embora sob formas e razões diferenciadas). O fascismo, por exemplo, pode se beneficiar deste tipo de vínculo irracional. A sua irracionalidade está no aspecto emocional e sentimental da ligação sem qualquer coordenação mais efetiva da consciência, ou seja, de ordem racional. É por isso que é porta aberta para a violência, já que a comunicação e reflexão são interrompidas.
[2] O abstencionismo era a prática mais corrente dos setores politizados e à esquerda no início do século 20 até os anos 1960. Porém, no caso brasileiro, onde o voto é obrigatório e quem não vota é penalizado, o voto nulo é a forma de ação antiparlamentar existente. Alguns pregam o abstencionismo, pensando ser assim mais radical, porém, não existe nenhuma diferença fundamental entre as duas ações. Se o voto nulo pode parecer “legitimador” por se realizar o ato do voto, embora recusando-o, o abstencionismo tende a ser desmobilizador, já que não provoca nenhum ato, nem de recusa. O voto nulo faz perder tempo, mas se for uma luta cultural, provoca reflexões e ações. O abstencionismo também pode fazê-lo, mas não tem ao seu lado a obrigatoriedade de presença numa seção eleitoral. O abstencionismo promove um total afastamento da política burguesa, enquanto que o voto nulo ainda mantém um vínculo formal. No fundo, ambos tem vantagens e desvantagens e a opção por um ou por outro, ao invés de radicalismo abstrato e rebeldia irrefletida, é mais questão de contexto e estratégia. No presente texto, como são bastante semelhantes, quando falamos de voto nulo involuntário, espontâneo, voluntário e autogestionário, isso também se aplica ao processo de abstenção e ao abstencionismo.
[3] Luta e não “campanha”, que significa reproduzir a linguagem eleitoral.

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Artigo publicado originalmente na Revista Enfrentamento, ano 04, num. 08, jan./jun. 2010.

sexta-feira, 18 de março de 2016

Blocos Sociais e Luta de Classes - Nildo Viana




Blocos Sociais e Luta de Classes
Nildo Viana


A sociedade capitalista ampliou e complexificou a divisão social do trabalho como nunca antes na história da humanidade. A luta de classes, em determinados momentos do capitalismo, era mais cristalina e o confronto entre burguesia e proletariado era mais perceptível. A partir das mutações do capitalismo, especialmente após a emergência do capitalismo oligopolista (regime de acumulação intensivo, após segunda metade do século 19) e, mais ainda, o capitalismo oligopolista transnacional (regime de acumulação conjugado, pós-segunda guerra mundial), esse processo vai ficando cada vez menos transparente e isso dificulta a percepção das lutas de classes, especialmente no plano conjuntural e nos processos revolucionários. Uma solução para a percepção mais adequada desse processo pode ser encontrada no conceito de blocos sociais. Desta forma, torna-se importante a análise dos blocos sociais e seu significado histórico e político para a compreensão das lutas de classes.

Blocos Sociais e Intransparência Capitalista

Esse processo de crescente intransparência, pós-Marx, tem a ver com a complexificação e ampliação da divisão social do trabalho, incluindo a formação e/ou consolidação de novas classes sociais. Marx previu em alguns momentos, tal como no Manifesto Comunista (MARX e ENGELS, 1988), uma polarização crescente entre burguesia e proletariado. Da mesma forma, analisava a revolução proletária como uma revolução da maioria, com o crescente processo de proletarização da sociedade burguesa (MARX e ENGELS, 1988). A revolução proletária também parecia próxima, pois o proletariado se desenvolvia em quantidade, organização e consciência. Esses três aspectos (polarização entre as duas classes fundamentais, proletarização e revolução da maioria, fortalecimento do proletariado) ocorreu numa época de crise do regime de acumulação extensivo, que se expressou ao lado de revoluções burguesas tardias, e assim houve uma certa radicalização das lutas de classes na Alemanha e França, entre outros países, desde a década de 1840, embora com antecedentes em anos anteriores e com processos posteriores, que culminam com a Comuna de Paris, em 1871.

A constituição do regime de acumulação intensivo, fase do capitalismo oligopolista, marca um novo estágio na luta de classes. O proletariado conseguiu extrair da burguesia algumas concessões no interior das relações sociais da sociedade capitalista, como a redução da jornada de trabalho, legalização de partidos e sindicatos, etc. Ao mesmo tempo, a sociedade capitalista avançava, tanto no processo de produção, com a instituição do taylorismo (aumento da extração de mais-valor relativo) e outros processos, quanto com a criação de uma sociedade civil organizada, com uma onda de burocratização (partidos, sindicatos, universidades, etc.). Assim, o que a burguesia cedeu, recuperou sob outra forma. No entanto, o que nos interessa aqui é que o crescente processo de mercantilização e burocratização desse regime de acumulação gera novas classes sociais. Marx, em O Capital, percebeu a emergência da “classe dos serviçais” (MARX, 1988), o que preferimos denominar classe subalterna, assim como a classe burocrática, existente através de sua fração estatal e empresarial, se vê fortalecida por uma ampla burocracia civil em constante crescimento (partidária, sindical, universitária, eclesiástica, etc.). A classe intelectual também se consolida em alguns setores e frações, se ampliando durante tal regime de acumulação. Assim, novas classes sociais emergem e complexificam a luta de classes, ao lado das classes anteriormente existentes (campesinato, lumpemproletariado, latifundiários, artesãos, semiburgueses, cooperados, rentistas, etc.).

Esse processo acaba promovendo uma confusão na luta de classes. O proletariado acaba muitas vezes se confundindo com algumas destas classes, tanto pela proximidade social e de renda com algumas, quanto por interesses e reivindicações semelhantes, além das influências culturais. O proletariado, por exemplo, em certos momentos e setores, se aproxima da burocracia sindical, especialmente nessa época em que a força e diferenciação desta era menor do que passa a ocorrer a partir da passagem para o capitalismo oligopolista transnacional. No entanto, a origem proletária de muitos sindicalistas acaba fazendo a confusão permanecer até os dias de hoje, embora em muito menor grau. Mas também a proximidade com o campesinato, artesãos e semiburgueses[1], aliado com a hegemonia burguesa, é outro obstáculo constituído para o avanço da luta proletária.

A questão é que essa complexificação das lutas de classes aumenta com a passagem para o capitalismo oligopolista transnacional (pós-1945), pois o avanço da mercantilização, burocratização e competição, gerando um crescimento das classes subalterna, burocrática, intelectual. Por outro lado, a política integracionista acaba diminuindo o ímpeto contestador do proletariado por algum tempo e a renovação hegemônica, novas ideologias, novas tecnologias, entre outros processos, acabam contendo o potencial revolucionário dentro do capitalismo, no caso dos países imperialistas. 

O aumento relativo de renda, os avanços tecnológicos e medicinais, o crescimento do consumo (junto com a ideologia da “sociedade de consumo”), ampliação da destruição ambiental e competição social, intensificação dos desequilíbrios psíquicos[2], entre outros, criam uma situação social marcada por um recuo do na qual há, por um lado, um recuo do movimento operário e, por outro, emergem novas reivindicações e algumas divisões sociais acabam ganhando maior relevância e presença, gerando um fortalecimento de certos movimentos sociais. Assim, os movimentos sociais, baseados em divisão de grupos, que formam a sua base social, acabam complexificando e confundindo ainda mais as lutas de classes (VIANA, 2016). A juventude emerge como grupo social consolidado a partir dessa fase do capitalismo e passa a cumprir um papel contestador cada vez mais forte com o desenvolvimento desse regime de acumulação, desde as lutas estilistas até as lutas mais radicais, tal como as lutas estudantis do final dos anos 1960. A juventude, no entanto, não é uma classe social e sim um grupo social e, por conseguinte, é constituída por indivíduos de diversas classes e isso, aliado com outras determinações, geram distintas “conformidades geracionais” (VIANA, 2015a).

A presença de outros movimentos sociais, como feminino, negro, pacifista, ecológico, entre outros, todos policlassistas, acabam reforçando esse processo de confusão e complexificação no processo da luta de classes, o que se amplia ainda mais com a passagem para o regime de acumulação integral, não só por surgiram novas reivindicações e grupos, como também pelas novas ideologias e renovação hegemônica que produz e cria um fortalecimento do “especifismo” (TARDIEU, 2015).

É nesse contexto que o conceito de luta de classes continua expressando a realidade, em seu caráter essencial. A classe capitalista continua sendo a classe dominante, dominando o aparato estatal (gerido por sua classe auxiliar, a burocracia, em sua fração estatal), a produção intelectual e informacional, e gerindo a acumulação de capital, processo de exploração, etc. O proletariado continua sendo a classe revolucionária e que traz em si o futuro, como colocou Marx (MARX e ENGELS, 1988). As demais classes (e os grupos sociais) giram, ainda, em torno dessas duas classes. No entanto, esse processo se tornou menos visível e mais complexo. A emergência e consolidação da burocracia como classe social, especialmente certas frações da sociedade civil, e a ideologia da representação que emerge com a democracia representativa (VIANA, 2003), gera uma nova força política que atrai parte do proletariado e demais classes desprivilegiadas. O proletariado, em períodos de estabilização perde parte de sua radicalidade e ao lado da burocratização e mercantilização, acaba recuando em suas lutas. Ela não deixa de existir, continua sobrevivendo como luta cotidiana, lutas espontâneas, explosões localizadas de radicalidade, algumas vezes reforçadas por outros setores da sociedade (juventude, lumpemproletariado, grupos políticos, intelectuais, etc.).

É nesse contexto que é necessário entender que uma coisa são as classes sociais determinadas pelas relações de produção dominantes e outra coisa são elas agindo de acordo como seus interesses de classe, especialmente os interesses fundamentais (que são distintos dos interesses imediatos). Os interesses imediatos são os compartilhados pelos indivíduos das classes, tal como o interesse dos proletários em aumentos salariais, da burguesia em aumento de lucro, dos burocratas em aumento da burocratização e assim por diante. A luta pelos interesses imediatos é constante, mesmo porque são reforçados pela mentalidade burguesa, hegemonia, pressões sociais, etc. e, muitas vezes, eles estão intimamente ligado à própria sobrevivência (nesse caso, em setores das classes desprivilegiadas) ou sustentação de pertencimento de classe.

Os interesses fundamentais são aqueles que apontam para as necessidades coletivas de uma classe social em sua totalidade e em longo prazo. Assim, a classe capitalista tem como interesse fundamental a reprodução ampliada do capital, condição para a continuidade de sua existência; o proletariado tem interesse fundamental em abolir o capital e a si mesmo, superando sua situação de classe explorada; a burocracia tem interesse fundamental em burocratizar o conjunto da sociedade. Estes exemplos apenas mostram os interesses fundamentais de algumas classes. Porém, nem sempre as classes sociais defendem seus interesses fundamentais. Voltaremos a isto adiante.

Outros elementos complexifica essa situação, que são as subdivisões no interior de uma classe social e seus interesses específicos, bem como outras formas de divisão social. Isso, muitas vezes, gera diferenças, divisões políticas, conflitos, no interior de uma mesma classe social. Outro elemento é o da consciência, pois não é homogênea em uma classe social e mesmo tendo o mesmo modo de vida, interesses comuns (imediatos e fundamentais) e luta comum contra outras classes, o que gera costumes e representações também comuns (MARX e ENGELS, 1991). No entanto, em meio ao que é comum, também se manifesta diferenças, especialmente no âmbito político e social.

É nesse contexto que a distinção realizada por Marx entre classe em-si (determinada) e classe para-si (autodeterminada) é fundamental. A classe determinada é aquela que reproduz a dinâmica gerada pelas relações de produção dominantes, pelo aparato estatal e, no capitalismo contemporâneo, pelo capital comunicacional, instituições, etc. Existe uma classe social que é, imediatamente, classe autodeterminada: a burguesia. Ela, por ser a classe dominante e por possuir uma “associação” que faz valer seus interesses de classe, o estado, é autodeterminada, defende seus interesses fundamentais via aparato estatal. Isso, no entanto, não quer dizer que ocorre com todos os indivíduos, frações, setores, da classe capitalista. Muitos indivíduos, setores, etc., podem ter interesses imediatos que entram em contradição com os interesses fundamentais da classe, além da questão da consciência acima aludida e outras determinações. No entanto, ela é a classe mais homogênea e que possui um aparato que defenda seus interesses fundamentais.

O proletariado, por sua vez, é uma classe determinada pelo capital (relações de produção dominantes) e por isso fica, geralmente, no nível dos interesses imediatos, submetidos à hegemonia e mentalidade burguesas, subdividido em diversas frações, setores, perpassado por diversas diferenças (culturais, políticas, etc.). A sua passagem para classe autodeterminada é resultado da luta de classes, quando esta ganha certa radicalidade. Esse processo já foi descrito por alguns autores (MARX, 1986a; JENSEN, 2014; VIANA, 2008). As demais classes ficam numa posição semelhante ao proletariado.
Assim, por detrás da vida cotidiana e seu emaranhado de conflitos, conciliações, competição, mudanças, é possível perceber a luta de classes, mesmo que os agentes diretamente envolvidos não percebam da mesma forma o que está ocorrendo. Marx já havia colocado isso ao tratar das lutas de classes na França durante o bonapartismo:

Os legitimistas e os orleanistas, como dissemos, formavam as duas grandes facções do partido da ordem. O que ligava estas facções aos seus pretendentes e as opunha uma à outra seriam apenas as flores-de-lis e a bandeira tricolor, a Casa dos Bourbons e a Casa dos Orléans, diferentes matizes do monarquismo? Sob os Bourbons governara a grande propriedade territorial, com seus padres e lacaios; sob os Orléans, a alta finança, a grande indústria, o alto comércio, ou seja, o capital, com seu séquito de advogados, professores e orados melífluos. A Monarquia Legitimista foi apenas a expressão política do domínio hereditário dos senhores de terra, como a Monarquia de Julho fora apenas a expressão política do usurpado domínio dos burgueses arrivistas. O que separava as duas facções, portanto, não era nenhuma questão de princípio, eram suas condições materiais de existência, duas diferentes espécies de propriedade, era o velho contraste entre a cidade e o campo, a rivalidade entre o capital e o latifúndio. Que havia, ao mesmo tempo, velhas recordações, inimizades pessoais, temores e esperanças, preconceitos e ilusões, simpatias e antipatias, convicções, questões de fé e de princípio que as mantinhas ligadas a uma ou a outra casa real – quem o nega? Sobre as diferentes formas de propriedade, sobre as condições sociais, maneiras de pensar e concepções de vida distintas e peculiarmente constituídas. A classe inteira os cria e os forma sobre a base de suas condições materiais e das relações sociais correspondentes. O indivíduo isolado, que as adquire através da tradição e da educação, poderá imaginar que constituem os motivos reais e o ponto de partida de sua conduta. Embora orleanistas e legitimistas, embora cada facção se esforçasse por convencer-se e convencer os outros de que o que as separava era sua lealdade às duas casas reais, os fatos provaram mais tarde que o que impedia a união de ambas era mais a divergência de seus interesses. E assim como na vida privada se diferencia o que um homem pensa e diz de si mesmo do que ele realmente é e faz, nas lutas históricas deve-se distinguir mais ainda as frases e as fantasias dos partidos de sua formação real e de seus interesses reais, o conceito que fazem de si do que são na realidade (MARX, 1986b, p. 45-46).

A análise magistral de Marx aqui é apenas uma aplicação da concepção materialista da história. O seu mérito, presente em qualquer análise dialética autêntica, consiste em superar a aparência e revelar por detrás dela a essência e o concreto com suas múltiplas determinações. Marx revela aqui, num plano mais histórico e concreto de análise, as múltiplas determinações sem nunca abandonar a determinação fundamental. Nesse processo, ele analisa as “duas facções do partido da ordem”. Ele chega até aos detalhes mais corriqueiros das lutas políticas, mostrando sua concreticidade e como a consciência, as concepções, as formas de pensar, etc., existem e se manifestam, mas não estão livres da determinação dos interesses de classes. Além disso, poderíamos elencar as correntes de opinião e diversos outros fenômenos contemporâneos que aumentam a complexidade da situação. As duas facções do partido da ordem são semelhantes ao que denominamos duas alas do bloco dominante, embora o vínculo das facções com classes sociais era muito mais visível, devido a época e suas especificidades.

Essa análise de Marx serve, principalmente, para conseguirmos entender o significado da luta de classes e como ela, concretamente, se manifesta, sendo que podemos e devemos trabalhar no âmbito do que é essencial (a luta de classes e os interesses envolvidos) e sua materialização concreta, com múltiplas determinações, que obliteram a consciência dos indivíduos e classes nesse processo. Isso, aliado à complexificação real e confusão mental em torno das lutas de classes na sociedade contemporânea, reforça a necessidade de pensarmos não apenas em termos de classes isoladas, mas também de suas relações, aproximações, distanciamentos, oposições e antagonismos. A compreensão desses processos pode ser realizada através do conceito de blocos sociais. Isso não significa abandonar a luta de classes, mesmo porque, tais blocos são expressões desta luta em nível concreto. Mas significa ultrapassar a análise dicotômica e abstrata em apenas duas classes sociais, que tem o mérito de apontar para o essencial, mas tem o demérito de esquecer a complexidade da realidade e, ainda, permitir deformações de análise por reduzir os conflitos sociais a apenas dois polos em oposição, colocando lutas secundárias como fundamentais e, por conseguinte, lutas fundamentais como secundárias. Assim, para a análise da política institucional (o que seria útil para cientistas políticos se ultrapassassem sua cegueira ideológica), para o entendimento das divergências no interior da classe dominante ou das classes privilegiadas, para a compreensão das conjunturas políticas e formas de amortecer a luta entre classe capitalista e classe operária, o conceito de blocos sociais se torna fundamental.

O que são blocos sociais?

Os blocos sociais podem ser definidos por sua composição social, suas concepções, entre outras formas. Mas isso seria ilusório. Não existe uma relação direta e imediata entre blocos sociais e classes sociais, pois não são conceitos que podem ser sobrepostos um ao outro. Os blocos sociais reúnem classes que, por sua vez, podem estar dispersas em mais de um deles ou suas subdivisões. Por isso é importante entender o conceito de blocos sociais antes de tratar dos blocos e suas manifestações concretas.

Antes, no entanto, de iniciar, é preciso deixar claro as semelhanças e diferenças entre a concepção aqui apresentada de blocos sociais e a ideologia gramsciana de “bloco histórico”. A razão disso é que, no meio da diferença, existem algumas semelhanças, principalmente no uso que alguns inspirados na ideologia gramsciana usam para analisar as lutas políticas. O construto gramsciano de “bloco histórico” é uma tentativa de expressar, simultaneamente, “base” e “superestrutura”, formando um bloco num determinado momento histórico. Apesar de tal concepção estabelecer um vínculo correto, pois as mudanças no interior de um determinado modo de produção certamente afeta as formas sociais[3], a noção de bloco histórico pode trazer mais confusão do que esclarecimento, especialmente na perspectiva politicista e culturalista gramsciana (VIANA, 2015b). A unidade e correspondência entre modo de produção e formas sociais já está em Marx, no âmbito de uma determinada sociedade (por exemplo, no modo de produção capitalista há unidade entre este e as formas sociais capitalistas) e as mutações no modo de produção, obviamente, também geram mudanças nas formas sociais.

O conceito de blocos sociais é distinto, já que não enfatiza a totalidade das formas sociais em sua correspondência com o modo de produção (muito menos da forma abstrata e equivocada apresentada por Gramsci). Os blocos sociais são determinadas formas assumidas por uma constelação de forças que expressam o interesse de uma ou outra classe social, girando em torno das duas classes sociais fundamentais. Porém, não se trata das classes sociais concretamente, muito menos de sua totalidade. Os blocos sociais são as formas mais organizadas e conscientes expressas pelas classes sociais que estabelecem estratégias, programas, ideologias, que direcionam suas ações de acordo com os seus interesses. Assim, os blocos sociais estão indissoluvelmente ligados às classes sociais, mas eles não são a mesma coisa. A diferença entre classe social e bloco social reside no fato de que o primeiro expressa a classe em sua totalidade e ação espontânea e o bloco expressa seus setores mais organizados e conscientes, bem como a classe é uma unidade e o bloco é a reunião de mais de uma classe (e contando com suas subdivisões), realizando uma coalização de forças. É por isso que o termo é “bloco”, pois é a reunião de um conjunto de forças que expressam de forma organizada e consciente determinadas classes sociais.

Assim, o que comanda os blocos sociais são os interesses de classes (imediatos ou fundamentais, dependendo do caso, bem como do conjunto da classe ou de frações ou setores, tal como mostraremos a seguir, colocando a dispersão de forças de determinadas em classes em mais de um bloco). Os blocos sociais são, portanto, as forças mais ativas no desenvolvimento social, produzindo estratégias, ideologias, ações, programas, disputas e alianças, etc. A base social dos blocos sociais são as classes sociais, mas estas em suas divisões e subdivisões, na forma de classe determinada ou, raramente (com exceção da burguesia) autodeterminada, submetidos à hegemonia, competição, lutas.
Os blocos sociais não são homogêneos, pois como são compostos por classes e frações de classes, com suas subdivisões e interesses próprios, bem como geram uma diversidade de organizações (muitas vezes complementares, aliadas ou desalinhadas) e concepções (ideologias, doutrinas, etc., muitas vezes próximas, mas com diferenças e ênfases distintas). Essas organizações são as mais variadas, tais como fundações, partidos políticos, grupos políticos, setores organizados dos movimentos sociais, empresas, associações, etc. As concepções também são de várias formas, desde as ideologias mais sistemáticas, passando por doutrinas políticas, representações cotidianas fundadas em determinada mentalidade, bem como, momentaneamente, expressando determinada corrente de opinião.

Essas distinções no interior dos blocos sociais não devem, no entanto, ser superestimadas. O bloco social, no fundo, especialmente quando se vê ameaçado ou seus interesses comprometidos, se unifica. Essa divisão ocorre no interior de uma unidade, ou seja, no aspecto geral e fundamental, há concordância, a discordância ocorre nos detalhes, estratégias, táticas, interesses particulares no interior dos interesses de classes que apontam para a reprodução ou transformação da sociedade. Essas distinções podem ser denominadas alas e cada bloco social tem mais de uma ala, embora uma seja sempre hegemônica. A existência e dinâmica dessas alas são comandadas pela luta de classes e suas derivações: interesses, formas de consciência, processos psíquicos coletivos, disputas políticas, partidos políticos, etc., de acordo com a dinâmica do modo de produção, especialmente os regimes de acumulação e conjunturas políticas.

As alas dos blocos sociais podem aumentar ou diminuir em quantidade, dependendo do contexto, bem como pode promover aproximações ou distanciamentos, intensificar ou reduzir competição e conflitos. A luta de classes, a dinâmica do regime de acumulação, as conjunturas, entre outros processos, acabam interferindo na formação e ação das alas dos blocos sociais e nos interesses específicos internos tanto dos blocos sociais quando de suas alas, gerando maior ou menor oposição.
Um elemento que deve ser esclarecido é que a dinâmica dos blocos sociais e de suas alas internas varia de acordo com o bloco social específico do qual se trata. Cada bloco social aglutina determinados interesses, partidos, ideologias, concepções e eles são distintos, por isso existe oposição ou antagonismo entre os blocos sociais. Da mesma forma, no interior de cada bloco social, também existem esses processos, que gera, internamente, oposição, competição, mas nunca antagonismo, já que o interesse geral é o mesmo, especialmente o fundamental, que é a reprodução do capitalismo (no caso do bloco dominante e do bloco reformista, tal como mostraremos adiante) ou abolição do mesmo (no caso do bloco revolucionário). A dinâmica interna das alas também é distinta, pois não somente a base social, as formas organizacionais e de consciência, bem como interesses imediatos e específicos, entre outros processos, são distintos. Isso é o que pode ser colocado num nível mais elevado de abstração, a análise concreta dos blocos sociais permite ir além e especificar melhor sua dinâmica e subdivisões.

Em síntese, os blocos sociais são expressões de classes e frações de classes que se unem através de suas forças organizadas e formas de consciência, gerando novos interesses e processos de luta, o que complexifica a luta de classes, inclusive pela confusão, muitas vezes estabelecida (e algumas até intencionalmente) pelos representantes intelectuais do bloco dominante ou do bloco progressista (reformista), no sentido de desviar a luta de classes da questão fundamental, o modo de produção capitalista, para a política institucional, questões morais, disputas partidárias, etc.

Isso quer dizer que a análise marxista dos blocos sociais mostra o que a autoilusão desses expressam, mas deixando claro e transparente o que é ilusório e autoilusão e o que é real, ou seja, qual seu significado para a luta de classes, sua função de reprodução ou transformação. Ou seja, sob a intransparência da diversidade de ideologias, formas de consciência com conteúdos distintos, partidos, forças organizadas, posições políticas, etc., a análise marxista objetiva deixar transparente o jogo e suas regras. A análise marxista visa, portanto, mostrar que faz parte do jogo e suas regras iludir o proletariado e as demais classes desprivilegiadas para que participe dele e se envolva nesse processo abandonando seus interesses de classe, especialmente o fundamental, a sua autoemancipação, e vire bucha de canhão das classes privilegiadas. A inclusão do proletariado nesse jogo e em suas regras, seja a política institucional, seja a luta pelo poder estatal ou qualquer outro elemento, significa a sua manutenção como classe determinada, envolvida na dinâmica capitalista. A única vantagem, dependendo do contexto, é quando existe a possibilidade de, no processo de luta, ultrapassar os limites impostos pelo jogo e suas regras, o que pode ocorrer dependendo do contexto e do que está em jogo.

Os blocos sociais são fundamentalmente três. Um bloco gira em torno da classe dominante, sendo o bloco dominante e o outro gira em torno do proletariado, sendo o bloco revolucionário. Entre ambos, aparece um terceiro bloco, composto por frações de classes que buscam se autonomizar, especialmente a burocracia. A força desses três blocos e suas dinâmicas são diferentes e se alteram com o desenvolvimento da luta de classes. Por isso é interessante abordar cada um desses blocos de forma separada e depois analisar suas relações no espaço concreto das lutas de classes.

O Bloco Dominante[4]

A classe dominante, por seu poder financeiro, controle da acumulação de capital, controle do capital comunicacional, além do domínio sobre o aparato estatal, é a força central no bloco dominante e que o coordena e estabelece seus objetivos, a partir dos seus interesses. A classe capitalista não é homogênea e por isso persegue os mesmos interesses fundamentais e gerais, a reprodução do capitalismo, ao lado de interesses particulares e imediatos, gerando diferenciações no seu interior. Em cada regime de acumulação, uma determinada estratégia de classe[5] no sentido de conservação do capitalismo se torna hegemônica no interior da classe dominante. O bloco dominante se constitui a partir de determinado regime de acumulação[6], ou, o que significa dizer o mesmo com outras palavras, uma certa forma cristalizada de luta de classes. Em cada regime de acumulação emerge uma estratégia de classe da burguesia que é duradoura e o bloco dominante, mesmo que mude seus representantes individuais, grupos, partidos, frações de classes, etc., ele segue a linha estratégica adotada. É por isso que mesmo partidos do bloco progressista, quando conquista o aparato governamental, reproduz as políticas impostas pela estratégia da classe dominante adequada a determinado regime de acumulação.

A burguesia emergente fez aliança de classes com a nobreza, mas tão logo se viu forte o suficiente, graças ao apoio do proletariado e do campesinato, derrubou esta e se tornou a única classe dominante. Mas para manter sua dominação, ela teve que apelar para o apoio de suas classes auxiliares, especialmente a burocracia e a intelectualidade. Não deixa de ser revelador que a proliferação da burocracia civil e consolidação da classe intelectual ocorrem após as revoluções burguesas. A burocracia estatal sempre esteve a serviço da burguesia. A sua posição privilegiada, seu status, altos salários, entre outros aspectos, mostram a fração da classe burocrática mais forte, estável e bem remunerada. Cabe à burocracia estatal de comandar o aparato estatal e, por conseguinte, a função de reprodução do capitalismo. A burocracia empresarial, por sua posição social e proximidade com a classe capitalista, também é outra fração de classe que se aglutina no bloco dominante e tem papel importante no seu interior.

O bloco dominante conta, desde então, com a burguesia e com a burocracia estatal como uma classe e uma fração de classe sempre presentes nesse bloco. Ao seu lado, os estratos superiores da classe intelectual[7] e da burocracia (especialmente estatal,  empresarial, eclesiástica), em certos momentos e contextos históricos, a classe latifundiária. Essa é sua base social principal. Essa base social é reforçada pela adesão de indivíduos, setores, de outras classes sociais, mas que é mais frágil e determinada mais por reprodução da mentalidade e hegemonia burguesas, corrente predominante de opinião, ilusões e falsas esperanças, políticas estatais específicas, vantagens momentâneas, etc. Essa parte é mais frágil e pode mudar de lado com maior facilidade.

O bloco dominante visa garantir a reprodução do capitalismo e para isso cria uma ou mais estratégias de classe que supostamente realizam essa ambição. A estratégia vencedora é aquela que se adequa mais às necessidades e tarefas existentes num determinado regime de acumulação. A estratégia integracionista se adequava ao regime de acumulação conjugado, ou seja, o estado integracionista, intervencionista no plano da produção e reprodução do capital, nas relações de produção e relações de distribuição, bem como junto à população com suas políticas de assistência social e outras políticas estatais, e assim forjou uma dominação duradoura e que parecia insuperável. Da mesma forma, a estratégia liberal-democrática do regime de acumulação anterior, o intensivo, também ofereceu essa aparência.

Essa estratégia, fundada em necessidades e tarefas voltadas para garantir a reprodução ampliada do capital, se materializa em ideologias, doutrinas, concepções, políticas estatais. A burguesia tem um papel fundamental nesse processo através das empresas e fundações. A elaboração da estratégia capitalista nasce e se torna hegemônica graças às empresas capitalistas que financiam pesquisas, imprensa, etc., graças ao capital educacional (indo do ensino superior, de onde brotam algumas ideologias e concepções, ao inferior, onde elas são reproduzidas, divulgadas, vulgarizadas, etc.), ao capital comunicacional (que incentiva e reproduz, divulga, vulgariza, etc., determinadas ideologias, concepções, etc.), ao aparato estatal, com os seus aparatos particulares (educacional e comunicacional, que executam o mesmo processo que suas versões privadas), fundações internacionais e nacionais, os partidos políticos (que realizam produção e reprodução cultural, bem como promovem divulgação e vulgarização e divulgação das mesmas) entre inúmeras outras instituições.

Assim, o capital cria todas as condições para a vitória e supremacia de uma determinada hegemonia. O bloco dominante executa esse processo através da classe capitalista, do aparato estatal, partidos políticos, das empresas e instituições. Assim, a cada regime de acumulação temos uma hegemonia e com a alteração do regime de acumulação, temos uma renovação hegemônica (VIANA, 2015c). Mas quem cria as ideologias, doutrinas, correntes predominantes de opinião, etc.? Indivíduos reais de carne e osso, como não poderiam deixar de ser. Sem dúvida, alguns indivíduos burgueses participam nessa elaboração, bem como alguns burocratas, mas os grandes mentores intelectuais são justamente os representantes intelectuais/ideológicos da burguesia. Estes estão espalhados pela sociedade, alguns trabalhando para empresas capitalistas privadas, outros para o capital comunicacional ou instituições educacionais (privadas ou estatais), como também para o aparato estatal. Esses ideólogos geram a estratégia, a base intelectual do bloco dominante. Alguns o fazem sob a forma mais técnica, do como fazer, e outros a reforçam com justificativas filosóficas, abstratas, ideologias mais amplas e sistematizadas, outros divulgam e vulgarizam, gerando representações cotidianas, chavões e correntes de opinião. Eles passam a ser hegemônicos nas esferas sociais[8] e através delas acaba se reproduzindo e se espalhando, influenciando até os intelectuais que se são próximos dos demais blocos sociais.

Assim, tanto as bases sociais quanto intelectuais do bloco dominante visam à reprodução do capitalismo. No entanto, isso não significa homogeneidade. Existem, no interior do bloco dominante, diferentes interesses, concepções, ideologias, etc. O primeiro ponto são que, ao lado do interesse geral e fundamental da reprodução do capitalismo, existem interesses imediatos e específicos de classes sociais, frações de classes, partidos políticos, grupos sociais, bem como distintas ideologias, concepções, representações. Assim, a solução para uma crise do regime de acumulação ou proposta de uma nova hegemonia, podem ser marcadas por divergências, da mesma forma que pode haver oposição em relação à hegemonia estabelecida. Isso fica mais forte ainda na disputa pelo poder estatal, nos regimes democrático-burgueses, nos quais determinadas forças no interior do bloco dominante quer dominar o aparato estatal. É por isso que é durante os processos eleitorais que essas divergências ficam mais explícitas.

Essas divisões geram alas distintas dentro do bloco dominante. O número de alas e a intensidade da oposição e conflito variam com a situação concreta, ou seja, com diversas determinações. As duas alas principais no bloco dominante tende a ser a ala governista e a oposicionista[9], facilmente identificável no processo eleitoral, nos dois grandes partidos ou coalizões partidárias. Isso, no entanto, pode ser complexificado se o bloco progressista tiver condições de polarizar com um dos partidos ou coalizões partidárias na disputa eleitoral principal (presidência, especialmente). Mas é possível existirem outras alas dependendo da situação concreta e pelo menos mais uma é bastante comum, apesar de sua visível fraqueza em épocas de estabilidade política e financeira. Trata-se da ala extremista, composta por forças nacionalistas, fascistas, neonazistas, entre outras. 

A oposição entre ala governista e oposicionista mostra uma disputa pelo poder que pode ou não estar acompanhada por diferente estratégia de classe. Geralmente a estratégia de classe expressa numa determinada hegemonia tende a ser quase consensual no bloco dominante, com exceção da ala extremista, embora essa só ganhe real possibilidade de contrapor sua estratégia em períodos de crise. As disputas eleitorais nos Estados Unidos, entre democratas e republicanos é um exemplo de duas alas do bloco dominante disputando o poder, assim como em diversos outros países.

A dinâmica do regime de acumulação e da luta de classes é uma das principais determinações do processo de divisão e unificação do bloco dominante, bem como os interesses e competição interna por poder, além das diferenciações de projetos e ideologias, especificidades nacionais, etc. Em momentos de formação de um regime de acumulação, geralmente após um período de crise do anterior, a tendência é uma unificação (mesmo com diferenciações em elementos secundários), bem como em sua época de consolidação. Isto quer dizer que durante o ciclo de formação e o ciclo de consolidação de um regime de acumulação há em nível geral uma unificação, o que não significa não haver oposição, disputa pelo poder, e sim que a hegemonia é forte e que o caráter da disputa é por posições e pelas forças que querem as vantagens do poder estatal. Claro que isso, dependendo da intensificação da oposição e divisão da classe dominante em apoio às alas, pode gerar uma situação inesperada e acelerar a própria crise do regime de acumulação. Em períodos dos ciclos de dissolução, a situação muda, as divergências internas se aprofundam, além dos interesses particulares e disputa pelo poder estatal, diferentes soluções para a crise e estratégias são apresentadas, tornando a disputa mais acirrada, e, ao mesmo tempo, desviando as classes desprivilegiadas da percepção da real determinação da crise e das verdadeiras soluções possíveis.

Em síntese, o bloco dominante é comandado pela classe dominante e tem como principal força auxiliar a burocracia estatal, que dirige o aparato estatal. O seu objetivo é, simultaneamente, a reprodução do capitalismo e dos interesses do bloco, que podem ser e geralmente são conflitantes em aspectos secundários, pois todos os seus componentes preferem a estabilidade política e financeira, o amortecimento da luta de classes, a reprodução ampliada do capital, entre outros elementos. As alas do bloco dominante geralmente disputam coisas secundárias, mas que nem por isso deixa de existir e comprometer a própria estabilidade que buscam manter. A classe dominante é dividida por frações e estas nem sempre possuem os mesmos interesses e a mesma percepção da realidade. O capital financeiro, por exemplo, pode preferir determinadas políticas estatais que lhe beneficia e outra fração do capital, como a comercial, pode preferir outras políticas financeiras. A burocracia estatal também não é homogênea e se diferencia entre burocracia governamental e burocracia estatutária, além de suas subdivisões. O mesmo ocorre com outras classes, frações de classes, grupos, indivíduos, que compõem o bloco dominante. No entanto, no final das contas, esse bloco se unifica em torno da estratégia da classe dominante e, caso setores se recusem a isso no interior de lutas de classes radicalizadas, podem ser descartados, que é quando emergem os regimes ditatoriais.
  
O Bloco Progressista (Reformista)

A divisão de classes da sociedade capitalista faz emergir, além das classes sociais fundamentais, diversas outras classes. Entre estas, se destacam a burocracia e a intelectualidade, que são classes auxiliares da burguesia. O caráter auxiliar dessas classes se revela na função que elas executam na sociedade capitalista, derivado da divisão social do trabalho, e nos privilégios que seus estratos superiores possuem para realizar esse processo. A burocracia exerce a função do controle social e a classe intelectual da produção cultural. Enquanto classes auxiliares da burguesia, sua autonomia é muito restrita. Os seus estratos superiores se aquartelam no bloco dominante. No entanto, seus estratos médios e inferiores[10] se aglutinam em torno de um outro bloco, o progressista ou reformista. Esses estratos acabam tornando-se insatisfeitos com sua situação social e por isso esboçam uma autonomização, dentro dos limites permitidos pela situação de uma classe auxiliar, gerando uma posição política que não se alinha totalmente com o bloco dominante. 

Uma parte do bloco progressista se aproxima mais do bloco dominante, outra tenta se aproximar mais das classes desprivilegiadas (e não do bloco revolucionário, a não ser em casos pontuais, como colocaremos adiante). A classe mais forte no seu interior é a burocracia. A burocracia civil é seu elemento mais forte e aglutina diversas frações da classe burocrática no seu interior, as burocracias partidárias, sindicais, universitárias, etc. A classe intelectual é sua segunda maior força, aglutinando intelectuais dissidentes, ambíguos, ou seja, aqueles que estão fora do circuito hegemônico e venal, ou seja, daqueles que apoiam o bloco dominante. No entanto, alguns indivíduos e setores da burocracia (nestas frações específicas), devido sua função de controle social e valores, se unem ao bloco dominante. É o caso de parte da burocracia sindical atrelada aos partidos que formam a coalização do bloco dominante, ou uma delas. A burocracia é mais conservadora que a intelectualidade e por isso, um número considerável de intelectuais hegemônicos e venais, por sua função de produção cultural, se aglutinam em torno do bloco progressista.

O bloco progressista também atrai setores da juventude, das classes desprivilegiadas e até mesmo alguns poucos da classe capitalista, entre outras possibilidades. No entanto, esses setores são apenas base de apoio e raramente conseguem um espaço de real influência. Essa é a sua base social e é por isso que é um bloco bem mais frágil e nem sequer possui uma estratégia de classe homogênea, pois suas divisões e fraqueza dificultam sua formulação. A sua produção cultural não tem a mesma força que a do bloco dominante, pois lhe faltam os recursos financeiros, espaços institucionais, meios de divulgação, etc. A sua ambiguidade no interior da luta de classes também é outro ponto fraco. Marx conseguiu notar um elemento ideológico que viria a ser comum no bloco progressista ao analisar a economia política inglesa. Em sua análise, ele mostra que a força da luta proletária fez com que alguns economistas buscassem unir os interesses capitalistas e proletários. Assim, o bloco progressista quer ser o mediador entre as classes antagônicas.

De sua fraqueza, também emerge sua necessidade de apoio popular para chegar ao poder estatal, seu objetivo máximo. Assim, em nível mais geral, a sua estratégia de classe é apelar para o proletariado, para as classes desprivilegiadas, geralmente usando terminologia específica, como “povo”, “massas”, entre outros, visando se fortalecer, eleitoralmente ou como base de apoio, para conquistar o poder estatal. Dessa estratégia geral, emerge duas formas específicas de a concretizar, adotadas por suas alas, ou seja, suas divisões internas. Assim, aparentemente o bloco progressista tem uma base popular, mas a sua direção pertence à burocracia e, em menor grau, à intelectualidade (e os indivíduos dessa muitas vezes passam para a burocracia e isso ocorre com relativa facilidade, quando são mais ativistas). Essa aparência tem um elemento real, pois parte da população e das classes desprivilegiadas realmente apoiam tal bloco, seja em processos eleitorais ou outras formas de ação política, embora em número reduzido, o que varia com as conjunturas políticas, processos sociais em geral, tendo épocas no qual isso se torna mais amplo. Outro elemento que deve ser considerado é que a classe de origem de muitos burocratas e intelectuais é o proletariado ou demais classes desprivilegiadas.

No entanto, é necessário alertar que não se trata da totalidade dessas classes, frações de classes, etc. O bloco progressista existe graças aos elementos organizados e conscientes da burocracia e outras classes, frações, grupos, etc. Alguns membros da burocracia, intelectualidade, etc., não se aglutinam em nenhum bloco social, apenas se reproduzem em sua profissão e vida cotidiana, algumas vezes assumindo posição em períodos eleitorais ou nem mesmo nesses casos. A sua estruturação como bloco também é mais frágil e ocorre no âmbito dos seus setores mais organizados, conscientes e ativos, especialmente nas burocracias partidárias e nos meios intelectuais geralmente, mas nem sempre, associados a elas. A sua expressão mais forte e característica é geralmente o partido social-democrata mais estruturado, burocratizado, eleitoralmente mais relevante e mais popular. Outros menores giram em torno dele, surgem a partir dele como dissidência (geralmente por questões táticas e secundárias, no plano do discurso, embora o real motivo seja, na maioria dos casos, a falta de oportunidade no interior do partido que se julga conseguir formando outra organização partidária).

Outras organizações burocráticas, como igrejas, universidades, organizações civis, etc., também fornecem elementos de ideologia, doutrinas, apoio. A intelectualidade tem uma parte ativa no interior do bloco progressista e outra que apoia, reforçando sua influência social, especialmente sobre as classes desprivilegiadas. Em determinadas situações, quando consegue polarizar com o bloco dominante, reforça sua unidade e capacidade de disputa real pelo poder estatal. Uma vez conseguindo concretizar a conquista eleitoral e se tornar a burocracia governamental, desloca todo um setor do bloco progressista (o partido principal e os aglutinados em sua coalização partidária, além de vários setores da sociedade e os setores cooptados a partir das políticas estatais, os iludidos, etc.). Nesse momento, o bloco progressista se enfraquece drasticamente e o setor que ascendeu ao poder estatal se torna mais conservador e passa a efetivar as políticas estatais determinadas pelo bloco dominante, pois reproduzem as necessidades da acumulação de capital.

A base intelectual do bloco progressista é constituída por determinadas ideologias, doutrinas, concepções, mais permanentes (social-democracia, bolchevismo, etc.), que formam a sua estratégia, e táticas mais conjunturais produzidas por seus burocratas e ideólogos. Um elemento permanente na ideologia do bloco progressista é justamente a ideia do progresso ou das reformas. A ideia de progresso aponta para uma concepção evolucionista e ligada à ideologia burguesa. Kautsky, um dos principais ideólogos da social-democracia, recuperava Darwin e a ideia de evolução (KAUTSKY, 1975). Bernstein pregava um “socialismo evolucionário” (BERNSTEIN, 1997). Ou seja, mesmo aqueles que no interior do bloco progressista colocam o “socialismo” como objetivo, o fazem a partir da ideia de progresso. O que denominam “socialismo” é, na verdade, um capitalismo reformado.
No entanto, também não existe uma unidade ou homogeneidade no bloco progressista. No seu interior se encontra forças extremamente moderadas, como se pode ver nos partidos trabalhistas, humanistas, verdes, bem como diversas versões, mais ou menos moderadas (e quanto maiores os partidos, maior é seu conservadorismo) da social-democracia, alguns partidos “comunistas” moderados, até chegar aos mais contestadores, especialmente os partidos “comunistas” de tendência trotskista ou maoísta. Nesse sentido, é possível identificar duas alas principais no bloco progressista, a ala moderada e ala extremista.

A ala moderada é a mais forte e a que tem maiores condições de polarizar, em certos contextos históricos, com o bloco dominante, inclusive, nesses momentos, aglutina quase todo o bloco progressista, até mesmo parte da ala extremista. Ela possui mais recursos financeiros, acesso a cargos nos governos (inicialmente municipais, indo para escalões superiores com o crescimento partidário e eleitoral), e sua base social se encontra mais nos estratos médios da burocracia e intelectualidade, embora também aglutine alguns indivíduos e setores dos estratos superiores e inferiores. Os partidos mais fortes e principais sindicatos e centrais sindicais são seus pilares principais, além das instituições estatais e civis nas quais burocratas e intelectuais se aquartelam.

A sua ideologia principal é a social-democracia, também conhecida como “revisionismo” ou “reformismo”. A sua estratégia tem variações, mas o elemento central é realizar conquistas eleitorais paulatinas até chegar a ganhar a eleição principal, tornando-se burocracia governamental. Em seus discursos, isso seria um meio para conseguir grandes reformas sociais e alguns até colocam isso como etapas para se chegar ao “socialismo”. No entanto, o objetivo real é a conquista do poder estatal e as reformas é apenas para se justificar, legitimar, conseguir apoio (popular e dos setores mais reformistas ou extremistas). As obras de Kautsky, Bernstein, Gramsci, Stálin, bem como versões moderadas de Lênin, Trotsky e outros são algumas de suas bases ideológicas mais antigas e permanentes, geralmente complementado por ideólogos mais recentes e por um pragmatismo mais forte. Alguns setores, inclusive, negam as ideologias (ou as deformam para seus propósitos) e pregam o ativismo e praticismo, bastante úteis para suas pretensões e manipulação das classes desprivilegiadas.

A ala extremista do bloco progressista é mais radical discursivamente. Ainda mantém o discurso em torno do “socialismo” ou “comunismo”. Uma parte dela vive buscando aliança com a ala moderada, alguns setores, inclusive, vegetam no interior de partidos social-democratas. A sua base social é geralmente os estratos inferiores da burocracia e intelectualidade. A burocracia partidária de pequenos partidos ou grupos políticos aspirantes a se tornarem partidos, a burocracia de sindicatos menores, além de setores de outras burocracias em seus estratos inferiores. Esse é o mesmo caso dos intelectuais que se aglutinam na ala extremista, são geralmente os mais jovens, iniciantes e marginalizados, bem como seus estratos inferiores.

A sua base ideológica principal é o leninismo (bolchevismo) em suas diversas variantes. Ela tem um apelo populista mais expressivo que a social-democracia e, ao mesmo tempo, reproduz o progressismo que está em sua base. Lênin e o leninismo são herdeiros da social-democracia e compartilharam com ela a maior parte de duas concepções (BARROT, 2014). A ideia de vanguarda, de conquista do poder estatal, etc. Certas tendências leninistas (especialmente os stalinistas) não se diferenciam da social-democracia a não ser no plano discursivo e por referências intelectuais e ao “socialismo”, algo para um futuro muito distante. O seu progressismo pode ser exemplificado na frase de Lênin: “O único socialismo que podemos imaginar é aquele baseado em todas as lições aprendidas através da cultura capitalista em larga escala” (Lênin, 1988a), ou, de forma mais enfática e reveladora, “O socialismo é inconcebível sem a grande técnica capitalista baseada na última palavra da ciência moderna, (é inconcebível) sem uma organização planificada do Estado que subordine dezenas de milhões de pessoas ao mais estrito cumprimento de normas únicas de produção e distribuição” (LÊNIN, 1988b).

A supervaloração da ciência tem um papel estratégico na ideologia leninista, pois é a justificativa e legitimação da ideologia da vanguarda e da necessidade de burocracia e direção, sem progresso capitalista. Ao lado dele, há o fetichismo das forças produtivas e da tecnologia, bem como da técnica. O etapismo acusado no stalinismo e na Terceira Internacional é apenas uma continuação dessa ideologia progressista. A própria concepção de socialismo e comunismo (nessa ideologia, dois coisa diferentes e etapas do progresso social) não ultrapassa a forma de um capitalismo reformado.

Em síntese, o bloco progressista é composto por aquelas tendências, incluindo sua ala extremista e pseudomarxista[11], realiza o culto do novo, do progresso capitalista, aliado com discursos sobre as classes desprivilegiadas, os trabalhadores, reformas sociais, distribuição de renda e coisa semelhantes. Daí sua atratividade para burocratas (valoração da direção, da burocracia), intelectuais (valoração da ciência, da técnica), dos jovens (valoração do novo e do progresso, da inovação), classes desprivilegiadas (discurso populista de distribuição de renda, combate a desigualdades, “socialismo”, “comunismo”).

O Bloco Revolucionário

O bloco revolucionário é o mais frágil dos blocos sociais. A razão disso se encontra em sua base social: o proletariado e as classes desprivilegiadas, setores da juventude, setores radicalizados de alguns grupos sociais (geralmente compostos por indivíduos das classes desprivilegiadas), uma minoria da intelectualidade, alguns poucos indivíduos oriundos das classes privilegiadas. Obviamente que não se trata do proletariado em sua totalidade, mas sim aqueles indivíduos ou setores do proletariado mais conscientes e organizados, embora em certos momentos históricos aumentem drasticamente sua quantidade até abarcar a maior da classe. O aumento quantitativo também ocorre nos outros quando isso acontece. O bloco revolucionário é expressão do proletariado e da hegemonia proletária, mas como essa classe revolucionária só passa de classe determinada pelo capital para classe autodeterminada no processo de luta, e quando este atinge certa radicalidade, então ele se funde com a classe revolucionária no desencadeamento de uma revolução proletária.

São raros os indivíduos oriundos da classe capitalista e da classe burocrática que se aglutinam no seu interior. Isso se deve, obviamente, aos interesses de classes delas que são, simultaneamente, os interesses pessoais dos seus integrantes. Além disso, o antagonismo do bloco revolucionário com a classe capitalista e com a burocracia, embora apenas uma parte dele tenha isto claramente consciente, reforça a recusa de sua presença nos mesmos. Indivíduos da classe intelectual, embora encontrem problemas semelhantes sob forma menos intensa, e certos setores não criarem obstáculos nesse caso, possuem maior presença, embora alguns colaborem à distância, apenas na produção intelectual sem uma ação política coletiva.

A força principal do bloco revolucionário é oriunda de alguns intelectuais, setores da juventude e setores das classes desprivilegiadas que se organizam em grupos políticos (marxistas, anarquistas, etc.), formais ou informais, em ações esporádicas ou produção cultural. Assim, além de grupos revolucionários propriamente ditos, tendências revolucionárias no interior de movimentos sociais, grupos artísticos, círculos intelectuais, entre outros, compõem o bloco revolucionário. Contudo, a sua força organizativa possui restrições que os outros blocos não possuem. O primeiro são os recursos financeiros escassos, geralmente a autossustentação financeira, o que é reforçado pela recusa em parte deles pela percepção que o processo de mercantilização pode gerar corrupção e abandono do caráter de classe proletário. O segundo ponto é um ponto forte e fraco ao mesmo tempo: a recusa da burocracia. Tal recusa permite dificultar ou impedir a burocratização, mas, ao mesmo tempo, diminui a eficácia política das organizações, pois ficam muitas vezes dispersa, sem maior organização, articulação e estratégia. A terceira é a dificuldade pessoal da maior parte dos indivíduos, pois necessitam sobreviver e buscar os meios para tal, como o trabalho, o que retira tempo e melhores condições de ação. A quarta é a formação política e intelectual geralmente precária, devido ao pertencimento de classe da grande maioria e a falta ou dificuldade de acesso ao saber teórico e outras formas de consciência, mais ainda sob forma aprofundada. Essa debilidade teórica e formativa acaba tendo um efeito negativo poderoso no interior do bloco revolucionário.

A sua base intelectual mais estruturada e desenvolvida é o marxismo. Obviamente que aqui se trata da teoria elaborada por Marx e daqueles que mantiveram a perspectiva proletária no seu interior, tal como o comunismo de conselhos e o marxismo autogestionário contemporâneo. Assim, o pensamento de Marx é a forma permanente por ter constituído os elementos teórico-metodológicos adequados para a análise da realidade social e luta de classes (método dialético, materialismo histórico, teoria do capitalismo, teoria da revolução proletária) que, em seus elementos essenciais, continuam válidos e foram atualizados e desenvolvidos pelo comunismo de conselhos e pelo marxismo autogestionário. Outras concepções, doutrinas, representações cotidianas se mesclam, influenciam, ou tentam trilhar um caminho autônomo, geralmente caindo no ecletismo com ideologias e concepções dominantes, mas que tem uma presença e impacto no bloco revolucionário que não pode ser descartado no plano analítico.

É com base no marxismo que se funda a estratégia de classe do proletariado. A luta proletária é pela transformação social radical e total das relações sociais, a instauração da autogestão social, ou “comunismo”. A forma como isso ocorre é através da autoemancipação proletária e essa tem na luta de classes o seu processo formativo e que permite a passagem da classe determinada pelo capital à classe autodeterminada. Nesse contexto, é fundamental fortalecer a luta proletária, tanto a luta direta – o que Pannekoek (1977) e os anarquistas – sob formas e com significados nem sempre coincidentes) chamaram de “ação direta”. Uma vez que o proletariado entra na luta direta contra o capital, ele desenvolve suas formas de auto-organização e autoeducação (MARX e ENGELS, 1988). O bloco revolucionário, através da produção cultural, elabora teorias, produções artísticas, propaganda generalizada, etc., efetivando uma luta cultural que contribui e fornece ferramentas para o proletariado lutar por sua autoemancipação e emancipação humana em geral.

Porém, a forma de produção cultural, além do processo de socialização do saber, divulgação de ideias e obras artísticas, etc., está dominada pelo processo de burocratização e mercantilização, juntando a isso as formas de censura, as dificuldades de produção e divulgação por parte do bloco revolucionário, os limites financeiros dos grupos e indivíduos, entre outras determinações, faz com que a luta cultural do bloco revolucionário fique bastante limitada e, mais ainda, com a influência da hegemonia burguesa, do capital comunicacional e da produção cultural burguesa sobre os indivíduos que potencialmente seriam do bloco revolucionário, enfraquecendo sua contribuição à luta proletária. Isso é reforçado, ainda, pela divisão no interior do bloco revolucionário.

Assim, a quantidade e qualidade da produção cultural do bloco revolucionário tem uma importância na luta de classes e, mais especialmente, na luta proletária. A constituição de teorias que consigam explicar a sociedade capitalista, a luta de classes, as tendências históricas de transformação social, as estratégias da classe dominante, as ideologias, etc. acabam assumindo importância fundamental por oferecer ferramentas intelectuais para os militantes, jovens, trabalhadores, para combater a hegemonia e mentalidade burguesas, bem como elaborar uma estratégia de classe mais eficaz.

Além da teoria, outro elemento fundamental, que, ao contrário do bloco dominante e do bloco progressista, há dificuldade em constituir, é uma estratégia de classe. Nesse caso, a estratégia de classe precisa justamente superar os elementos que são os seus próprios entraves. Esse é o caso da desarticulação do conjunto de grupos, organizações, indivíduos, etc. Enquanto a classe dominante coordena o bloco dominante através do aparato estatal e o bloco reformista tem partidos estruturados e altamente burocratizados para coordenar sua estratégia de classe, o bloco revolucionário não só se defronta com as dificuldades impostas pela sua não mercantilização e burocratização, e dificuldades oriundas das características de sua base social associadas à mentalidade e hegemonia burguesas, ainda encontra dificuldade em encontrar uma capacidade organizativa não-burocrática que consiga articular o bloco revolucionário com sua pulverização em uma grande diversidade de pequenos grupos, indivíduos, tendências nos movimentos sociais, etc.

A estratégia do bloco revolucionário, nesse contexto, é a mesma da época de Marx: a união, a associação. A palavra de ordem final do Manifesto Comunista, “proletários de todo o mundo, uni-vos” tem um significado mais profundo do que geralmente se imagina. A livre associação dos produtores, o comunismo ou autogestão social, pressupõe a associação. Num primeiro momento, essa associação é de combate, e nesse combate deve se tornar forma de autogestão que se generaliza em toda a sociedade. Esse processo, obviamente, pressupõe desenvolvimento organizacional e cultural. Na luta direta do proletariado e na luta do bloco revolucionário, eles elementos vão se formando e permitindo a superação da divisão e do divisionismo que é desenvolvido pelo bloco dominante. A estratégia do proletariado é, então, articular luta direta e luta cultural, do conjunto das classes desprivilegiadas e do bloco revolucionário, no sentido de se gerar uma política proletária, autônoma e independente[12], como passo para conseguir gerar as formas de auto-organização e autoformação fortes o suficiente para destruir o capital e o aparato estatal e instaurar a autogestão social.

O bloco revolucionário também não é homogêneo e é perpassado, como os demais, por divisões internas. Podemos distinguir, no seu interior, duas alas (que, como nos demais casos, podem ser subdivididas), a semiproletária e a proletária[13]. A ala semiproletária é composta pela mesma base social que a ala proletária. A distinção entre ambas ocorre no plano da consciência e da organização. A ala semiproletária possui uma formação política e intelectual na maioria dos casos incipiente, caindo muitas vezes no ecletismo, no dogmatismo doutrinário, na recusa da teoria, entre outras possibilidades. Por isso a hegemonia proletária no seu interior é parcial. No plano organizacional também é incipiente, pois muitos caem no individualismo, apesar de outros formarem grupos de jovens ou grupos políticos. Ela pode ser subdividida entre os rebeldes, sendo que alguns ficam na fronteira com o bloco progressista (e os indivíduos, concretamente, passam de um bloco para outro ou são ambíguos), compondo aqueles que Fromm (2014) denominou como sendo de “caráter rebelde”[14]. Há também os indivíduos e até mesmo grupos mais utópicos e, portanto, com maior capacidade e possibilidade de passar para a ala proletária rompendo com seus limites. Alguns possuem sentimentos que apontam para uma concepção revolucionária, mas alguns obstáculos, incluindo formação intelectual precária ou influência de determinadas concepções (mais ou menos avançadas) que travam o processo de desenvolvimento da consciência revolucionária num sentido autenticamente proletário.

Nessa ala há um setor mais organizado, consciente e estruturado, geralmente ligado ao anarquismo, autonomismo, com maior ou menos resistência à hegemonia burguesa ou burocrática, bem como se livrando disso com maior ou menor rapidez. Esse setor tem a vantagem de um trabalho mais permanente, um maior grau de consciência e organização, embora alguns também frequentemente caiam no dogmatismo e ecletismo. Quando ultrapassam o dogmatismo e a prisão doutrinária que criaram para si mesmos, avançam e podem confluir com a hegemonia proletária.

A ala proletária é aquela que não somente possui uma formação intelectual mais desenvolvida, como geralmente maior capacidade organizativa, desenvolvimento teórico e estratégico, bem como maior permanência histórica. A sua expressão mais desenvolvida é através do marxismo e é ela a força propulsora que gera a confluência que gera a hegemonia proletária. Nesse caso, a estratégia de classe e sua atualização e contextualização é realizada, bem como se constitui um núcleo revolucionário e propulsor e generalizador da hegemonia proletária.

A debilidade do bloco revolucionário diminui com a ascensão das lutas proletárias e ele mesmo tem um papel nesse processo. Quando mais, apesar das condições adversas, dificuldades e obstáculos, se estrutura e avança o bloco revolucionário, mais ele contribui com o desencadeamento dessa ascensão e com sua força ao ser desencadeada. Uma vez que a luta proletária e as lutas sociais em geral, isso reforça a tendência e possibilidade do bloco revolucionário se fortalecer e reforçar essa mesma luta. A formação teórica, capacidade organizativa e estratégia anterior facilita esse processo e por isso, mesmo em épocas de recuo do movimento operário, é necessário avançar, inclusive nos aspectos em que isso tem maior possibilidade de ocorrer, tal como na produção intelectual e, mais especificamente, teórica e estratégica.

Com a ascensão das lutas proletárias, vários setores da ala semiproletária avançam no sentido de superar ilusões, utopismos, influências oriundas da hegemonia burguesa e burocrática, e assim também fortalecem a hegemonia proletária. Nesse momento, a radicalização e o antagonismo na luta de classes também favorece o afastamento desses setores do bloco progressista. Um conjunto de determinações reforça esse processo, tal como o posicionamento de certas pessoas que revelam o que antes estava, para alguns, “oculto”. Nesse momento, indivíduos supostamente “avançados” ou “esquerdistas” assumem posições e defendem ideias que desiludem e abrem a possibilidade da percepção de alguns de que suas concepções em geral nunca foram revolucionárias e estão ligadas a determinados interesses.

Essa tendência geral é ligada a um processo anterior. A luta futura sofre as determinações da luta presente e por isso é fundamental para o bloco revolucionário superar o imediatismo, pois assim pode reforçar e fortalecer a tendência proletária e revolucionária. A maioria das lutas proletárias tende, em momentos não-revolucionários, a não se sedimentar, pois falta memória delas, as novas gerações ou mesmo os processos sequenciais (dias, meses, anos) não avançam a partir de um estágio já adquirido, mas retoma, na maioria dos casos, ao estágio anterior.

O avanço teórico fica restrito a indivíduos ou pequenos grupos ou parcelas do bloco revolucionário. O avanço cultural em geral de uma época se perde na geração seguinte que busca recomeçar do zero e retomando velhos erros já superados pela geração anterior. É o que Pannekoek (2007) colocava a respeito da superação teórica do reformismo que não é acompanhado pela superação real, pois a nova geração de militantes inicia via reformismo por não conhecer tal superação teórica[15]. Por isso a sedimentação é fundamental para o movimento operário e bloco revolucionário.

A sedimentação, apesar de seu papel fundamental, ocorre apenas parcialmente, geralmente com a produção teórica, que muitas vezes existe mas é desconhecida ou deformada/domesticada (como as obras de Marx). Para ocorrer uma sedimentação mais efetiva e menos parcial é necessário o fortalecimento do bloco revolucionário, o que significa não somente sua maior presença na luta de classes através da produção cultural (teórica, artística, propagandística, etc.) e nas lutas sociais, mas também na ampliação quantitativa e resolução das contradições, ambiguidades e limites de sua ala semiproletária.

Aqui nos temos um novo problema, que é a relação entre as duas alas do bloco revolucionário. A ala proletária, inclusive por sua maior radicalidade, é geralmente menos popular e numerosa que a ala semiproletária (em duas diversas manifestações). No entanto, o problema a se resolver é como a ala proletária se relaciona com a semiproletária. Uma forma é através da aliança, ou seja, da ação conjunta, busca de unificação, condescendência, etc. A outra é através do embate e da crítica.

A primeira tem a vantagem de criar aproximação e facilitar a unificação. No entanto, para fazer isso seria necessário certas concessões e isso poderia não só gerar perda de radicalidade do bloco revolucionário como também o seu próprio enfraquecimento, já que a presença da hegemonia burguesa ou burocrática na ala semiproletária (incluindo sua capitulação aos modismos, ecletismo, ativismo, etc.), entre diversos outros problemas, acabariam atingindo o bloco revolucionário, pois muitos indivíduos no interior desse não teria uma percepção mais clara desse processo e acabaria sofrendo influência da ala semiproletária. Isso é mais grave ainda quando setores dessa ala começam a regredir ainda mais.

A segunda tem a vantagem de, ao fazer a crítica e entrar no embate, trazer elementos de consciência e assim gerar processos de autocrítica e avanço no interior da ala semiproletária. Isso, no entanto, teria um possível efeito de maior isolamento da ala proletária devido ao afastamento da ala semiproletária. Contudo, o fortalecimento de uma luta que perde o seu caráter revolucionário é contraditório e trágico e por isso o combate é a forma mais adequada, a não ser em casos específicos e concretos em que haja uma real possibilidade de avanço da ala semiproletária ou setores dela.

Blocos Sociais:
Oposição e Antagonismo na Dinâmica da luta de Classes

A luta de classes ocorre na vida cotidiana, no local de trabalho, locais de estudos, moradia, cultura, instituições. Contudo, sob a forma consciente no sentido de uma consciência de classe, ela se manifesta no âmbito dos blocos sociais, a não em épocas de ascensão das lutas sociais. Os blocos sociais são expressões políticas e culturais das classes sociais, são sua “superestrutura”, para usar a metáfora do edifício. Por isso não deixa de ser curioso que o bloco revolucionário, que expressa a maioria da população, seja o menor e mais frágil deles, às vezes quase inexistente. A razão disso já foi explicada anteriormente: as condições de vida das classes sociais que tendem a gerá-lo e a hegemonia e mentalidade burguesas, além dos seus mecanismos de reprodução (aparato estatal, capital comunicacional, etc.).

O bloco revolucionário tem até potencialidade para avançar mais do que geralmente o faz, mas isso depende de certas determinações, como, por exemplo, uma compreensão mais ampla e profunda da realidade social, pois sem isso, se cede fácil ao encanto das ideologias da moda, da rebeldia inconsequente, do capital comunicacional, das necessidades imediatas e reformismo, entre milhares de outros elementos que poderiam ser citados. A força descomunal do bloco dominante constitui esses elementos e mostra sua capacidade de manter as classes desprivilegiadas submetidas ao mundo asfixiante da cultura capitalista e, por conseguinte, enfraquecer o bloco revolucionário, sendo um reflexo da fraqueza de tais classes. O antagonismo[16] entre bloco revolucionário e bloco dominante é outra determinação nesse processo, pois o primeiro vem para combater a mentalidade e hegemonia burguesas, mas também suas supostas “dissidências”, a hegemonia burocrática e as forças progressistas e reformistas, incluindo sua ala extremista. A radicalidade desse antagonismo acaba enfraquecendo o bloco revolucionário, pois aí ele aparece como “utópico”, irreal. Ou se aceita a sociedade como é, se aliando ao bloco dominante (e, caso queira alguma mudança pontual, detalhes, quem governa, tem a outra ala do mesmo para escolher no “livre jogo democrático”), ou se busca transformá-lo, de forma realista, aliando-se ao bloco progressista e buscando reformas e melhorias democraticamente ou, então, ainda tem sua ala extremista na qual pode ser mais “radical” e querer a estatização e tomada do poder estatal via luta armada. Nesse caso, “todo caminho leva a Roma”.

Por conseguinte, é inevitável que o bloco revolucionário seja marginal e eu seja a terceira força política. Assim, além de torcer pela ascensão das lutas sociais e especialmente as lutas proletárias, o que tende a ocorrer com o passar do tempo, inclusive reforçado pelas divisões internas do bloco dominante e pelas crises cíclicas do capitalismo, é precisa que o bloco revolucionário faça algo mais. Esse “algo mais” significa constituir um aprofundamento teórico para uma compreensão mais ampla e profunda da realidade social, a crítica das ideologias e imaginários, a superação teórica da hegemonia burguesa e mentalidade dominante, análise dos processos contrarrevolucionários e do projeto alternativo de sociedade.

Esse é um elemento possível, embora difícil e que não é suficiente. Ele pode sedimentar a luta cultural, elemento estratégico e fundamental. Mas precisa dar o segundo passo: socializar essa saber produzido, espalhar esses elementos de consciência pela sociedade, atingir as classes desprivilegiadas. Os meios para se conseguir isso são os mais variados: propaganda generalizada (desde os antigos panfletos, passando por jornais, usos da internet, etc.), mecanismos de divulgação diversos, encontros, intervenções localizadas, etc. Esse é um processo que pode contribuir com a sedimentação da luta, ou seja, garantir a conservação do que se conquistou e ampliar cada vez mais, servindo de ponto de apoio para lutas futuras.

Um terceiro elemento para o processo de sedimentação do bloco revolucionário é organizacional. É necessário constituir organizações não-burocráticas que avancem no processo de luta e intervenção, bem como gerando espaço próprio de sedimentação e avanço da luta. Sem dúvida, se ao invés de dez existiram cem organizações, isso significa um avanço da luta. É, no entanto, um avanço parcial, se tais organizações forem desarticuladas, se não tiverem formulação teórica e estratégica, pois as divisões, discordâncias, perda de capacidade mobilizadora e organizadora, de intervenção, graças aos “rachas”, disputas internas, desunião, serão constantes. A unificação do bloco revolucionário é fundamental para que ele consiga ser uma expressão mais eficaz do proletariado e contribua mais efetivamente com sua luta.

O quarto elemento é derivado deste e é justamente a intervenção e capacidade de mobilização junto à população, bem como criar uma corrente de opinião que se contrapunha à que é predominante, além de estar intimamente relacionada com a socialização do saber. Este quarto elemento, no entanto, depende dos anteriores.

E todos esses elementos dependem da base social do bloco revolucionário, com os problemas já aludidos anteriormente. Por isso se torna fundamental o processo de organização e articulação do conjunto das organizações que seria fundamental para a sedimentação[17] da luta do bloco revolucionário e do proletariado. A sedimentação da luta do bloco revolucionário tem um efeito na luta de classes que não é desprezível e pode ser fundamental quando eclodir crises e processos revolucionários. A sedimentação anterior permite melhores condições de luta, mais setores organizados e conscientes, ações mais estratégicas, menos divisões e maior capacidade de intervenção social e colaboração com a luta proletária.

O bloco dominante realiza um combate permanente ao bloco revolucionário, mas apenas nos momentos de crises, ascensão das lutas sociais, radicalização do movimento operário, possibilidade ou desencadeamento de um momento revolucionário, é que se pode se tornar um foco. Antes disso ou da possibilidade real disso acontecer, o bloco dominante apenas utiliza sua ação cotidiana e permanente de manter o domínio da mentalidade e hegemonias burguesas e formas de corrupção e cooptação de indivíduos, grupos, setores de movimentos sociais, etc. Outra ação comum é a criação de polarização entre as alas do bloco dominante ou então entre este e o bloco reformista (apesar de alguns integrantes da classe dominante temerem estes, não só por uma percepção equivocada da sua posição política, ilusoriamente tida como “revolucionária” – o que tem um momento de verdade no sentido de que a ala extremista pode conter grupos e indivíduos insurrecionalistas, que visam tomar o poder estatal via luta armada – mas por interesses mais específicos e contrários a processos de estabilização e determinadas políticas específicas).

O bloco dominante, quando sua hegemonia é muito forte e sem grandes riscos, pode ser dar ao luxo de gerar uma polarização entre as suas duas alas sob forma quase permanente. É o caso dos Estados Unidos, país no qual o bloco progressista é diminuto e o bloco revolucionário mais ainda, o que permite o revezamento no poder de democratas e republicanos, mudando de ala governista a oposicionista com relativa facilidade. Também em momentos de crises ou acirramentos de conflito, a polarização entre as duas alas do bloco dominante pode ocorrer para desviar ou enfraquecer os demais blocos jogando a população numa disputa estéril, apesar do risco que isso gera. O risco é que a polarização pode gerar envolvimento da população que, em certo momento, pode ultrapassar as duas alas em oposição. Esse é o caso brasileiro desde 2014, depois das manifestações de 2013 e risco do bloco revolucionário se fortalecer, o que ficou mais provável pelo fato da ala governista sem ex-integrante do bloco progressista e este estar desacreditado e enfraquecido. Essa polarização visa desviar as classes desprivilegiadas de uma aproximação com o bloco revolucionário e assim a ala governista, devido seu passado e seu neopopulismo neoliberal, aparecer como “esquerda” ou “comunista”, o que é alardeado pela ala extremista, coadjuvante que cumpre um papel de força essa polarização.

O bloco progressista, em alguns países, consegue um certo lugar de destaque e muitas vezes, com sua ala moderada (e mais moderada do que a de outros lugares), geralmente consegue polarizar com o bloco dominante. A disputa eleitoral é realizada e em certos contextos históricos, como durante o regime de acumulação conjugado, pode ser tornar governo e passar do bloco reformista para o dominante, como foi comum no caso europeu. O bloco progressista faz uma política dúbia, tentando agradar a gregos capitalistas e troianos proletários. Assim, precisa combater o bloco revolucionário com força, em alguns momentos é seu alvo principal, pois é seu principal adversário no interior da população, já que tem uma parte cativa que apoia o bloco dominante (ou uma de suas alas) e outra que tende a apoiar o bloco progressista. Mas tem uma parte da população mais oscilante e outra mais radicalizada e os votos e apoio perdido aí podem ser decisivos e daí o combate ao bloco revolucionário ser fundamental.

O bloco revolucionário, por estar ligado ao projeto de transformação social radical e total das relações sociais, então combate ambos os blocos, não no plano da política-institucional, que é o campo deles, a não ser quando propõe abstenção ou voto nulo, e sim a hegemonia burguesa ou burocrática, suas ideologias, suas organizações, através da crítica e da luta no conjunto das relações sociais onde consegue efetivar isso. Sem dúvida, a ala semiproletária do bloco revolucionário, por suas deficiências próprias, especialmente no plano da consciência (falta de teoria, estratégia, compreensão mais profunda do bolchevismo), mas também seu voluntarismo e ativismo, lhe permite unir com setores do bloco progressista, por seu suposto papel de mobilização social (especialmente sua ala extremista, embora até mesmo com as alas moderadas). Esse é outra dificuldade do bloco revolucionário, pois quando setores dessa ala realizam tal prática, acabam fortalecendo, legitimando e reforçando um setor do bloco progressista e tudo que ele significa (burocracia, especialmente) e para conquistar migalhas para os trabalhadores ou para conseguir apoio popular, popularidade, “inserção social”, acabam reforçando ilusões e fortalecendo adversários do projeto autogestionário.

O problema é que a base social deles nem sempre os acompanha e isso é mais grave no caso do bloco revolucionário, justamente o que tem a quantidade ao seu favor e que é sua maior força, mas devido aos seus problemas internos e a situação concreta do proletariado e classes desprivilegiadas, é mais difícil de conquistar. O bloco dominante também tem essa dificuldade, mas em grau muito menor e quando os seus interesses são ameaçados, tende a se unificar em torno da ala que poderá apresentar a resolução do problema, mesmo que seja a sua ala extremista ou até mesmo apelo ao bloco progressista para resolver as crises e conter a luta proletária. A estratégia da classe dominante de apelar para a social-democracia e, caso essa falhe, para o fascismo, nazismo, etc., é apenas um exemplo da capacidade de unificação (que nunca é total) do bloco dominante em torno daqueles que, normalmente, não faria.

O bloco progressista também se divide e tem a mesma dificuldade, mas devido sua composição social, tendo como forças diretivas classes auxiliares da burguesia, precisa do apoio popular e tem, muitas vezes, dificuldade em conseguir isso e as classes que lhe dão sustentação nem sempre lhe apoia efetivamente. Isso ocorre com setores da burocracia que preferem, por seus interesses de fração de classe, a subordinação privilegiada à classe dominante, aliando-se ao bloco dominante e setores da classe intelectual, sendo que uma pequena parte dessa ainda se alia ao bloco revolucionário, enquanto que a maioria se alia ao bloco dominante. A sua unificação raramente acontece, sendo que isso só é possível quando se aquartela no poder estatal, unificando a maioria em torno de sua ala moderada, excluindo a ala extremista (a parte que não se converte em moderado para usufruir as benesses do poder) ou então quando sua ala extremista toma o poder estatal e unifica pela absorção e repressão dos poucos dissidentes, geralmente da classe intelectual ou burocracia inferior que quer ascender ao escalão superior.

Essa é uma breve síntese, do processo de confronto entre os blocos sociais e como são derivados das lutas de classes, pois, no fundo, eles estão expressando as classes e seus interesses. Uma síntese incompleta e muito distante do esgotamento das questões envolvidas, algumas apenas mencionadas.

Considerações finais

Os blocos sociais são reais, existem efetivamente, e são fundamentais para analisar as conjunturas políticas, as divisões e subdivisões das classes sociais, explicar fenômenos que aparentemente a luta de classes não explicaria (por ser uma emanação transformada delas por outras múltiplas determinações), etc. Ela ganha importância, especialmente no caso da análise das lutas de classes no plano histórico-concreto e também na contemporaneidade, no qual é possível perceber, simultaneamente, as divisões entre as classes, o caráter de classe de suas posições, bem como as formas ilusórias como esses blocos sociais aparecem para a consciência da população e até mesmo setores dos movimentos sociais e grupos políticos.

Nesse sentido, a análise dos blocos sociais ajuda a superar a intransparência capitalista, especialmente no plano político, ao revelar a luta de classes por detrás das forças políticas, suas divisões e subdivisões. Esse processo analítico deve ser aprofundado para poder fornecer mais ferramentas analíticas e, ao mesmo tempo, ser utilizado para analisar casos históricos concretos, pois ganha concreticidade e mostra seu poder explicativo[18].


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[1] Camponeses e artesãos são classes sociais de produtores de bens materiais que emergem com o capitalismo e são submetidos à dinâmica produtiva m-d-m (mercadoria-dinheiro-mercadoria). A classe semiburguesa, que alguns denominam “pequena burguesia”, um termo impreciso, já que não se trata de uma fração da burguesia, é aquela que compartilha com as duas anteriores o caráter de propriedade nominal, mas sua dinâmica é a capitalista, d-m-d, com a diferença em relação à burguesia pela dificuldade de acumulação de capital, pois os pequenos comerciantes e outros possuem uma taxa de lucro baixa e que é gasta em grande parte as despesas com instalações, meios de produção, salários, por um lado, e com o consumo familiar, por outro, além da parte que é repassada para o capital bancário, sob a forma de pagamento de empréstimos, juros, etc. Esse último aspecto mostra sua semelhança com o campesinato e artesanato. Alguns semiburgueses conseguem, embora seja raro, se tornarem burgueses, outros conseguem se manter precariamente ou até mesmo razoavelmente, e muitos caem no proletariado ou na subalternidade e outros passam para a intelectualidade ou burocracia. Esse é o caso dos pequenos comerciantes que falem com a chegada dos shopping centers.

[2] Alguns autores anunciaram que o século 20 era o “século da ansiedade” (LINDGREN, 1965), e o uso de drogas, suicídio, entre outros processos, mostram que o desenvolvimento tecnológico e financeiro não é acompanhado pelo processo de humanização, gerando novas formas de sofrimento psíquico, o que, em parte, foi tematizado por Fromm (1986).

[3] Entenda-se por formas sociais as formas sociais de regularização (VIANA, 2007), o que Marx (1983) denominou “formas jurídicas, políticas e ideológicas”, ou, metaforicamente, “superestrutura”. O tratamento crítico do uso do termo metafórico “superestrutura” se iniciou com Korsch (1983), sendo retomado de forma ambígua por Althusser (1986) e Canclini (1983) e, mais recentemente, reavaliado e substituído por formas de regularização das relações sociais ou simplesmente formas sociais (VIANA, 2015d).

[4] Não teremos espaço para analisar a diferença entre o conceito de bloco dominante aqui trabalhado com a noção de “bloco no poder” de Poulantzas (1977), o que ficará para outra oportunidade.

[5] Henri Lefebvre, de forma abstrata e ambígua, percebeu a existência das estratégias de classe e estabeleceu a modernidade como última estratégia da burguesia. No fundo, Lefebvre percebe o processo apenas superficialmente, em parte devido sua formação filosófica que obscurece sua percepção sociológica, o que é reforçado por sua interpretação filosófica e sociológica de Marx, no qual muitas vezes se revela uma leitura superficial.

[6] Abordamos os regimes de acumulação de forma mais desenvolvida em duas obras (VIANA, 2009; VIANA, 2015d).

[7] Aqui não se trata de uma fração inteira, como no caso da burocracia estatal, mas uma subdivisão no interior das classes sociais distinta das frações. O critério dessa distinção, que tem alguns efeitos sociais, é o grau de privilégio revelado no status, renda e poder. Por conseguinte, intelectuais medíocres por possuírem maior renda, status e poder, estão no seu estrato superior. Isso quer dizer que o termo “estrato superior”, não diz respeito às frações de classes e nem sua competência real, ou formação intelectual, mas tão somente a critérios valorados pela sociedade burguesa e que trazem satisfação aos indivíduos que se encontram nessa condição, o que serve para conseguir sua fidelidade. O mesmo vale para a burocracia, pois seus estratos superiores são aqueles que possuem maior status, renda e, principalmente, poder, ou seja, estão acima na hierarquia burocrática, nas maiores organizações burocráticas (grandes instituições, partidos, empresas, etc.).

[8] A análise da dinâmica das esferas sociais e da classe intelectual mostra um processo de competição e hierarquia que, ao contrário do que certas ideologias colocam, não são “neutras” e sim intimamente ligadas aos interesses dominantes (cf. VIANA, 2015e).

[9] É preciso deixar claro que há setores da classe dominante que são chaves no processo de definição de qual é a ala governista e qual é a oposicionista. Em cada caso concreto, de cada país, isso pode se alterar. Quando a classe dominante está dividida ou há um equilíbrio de forças entre as duas alas principais, então a situação de uma ala como governista e de outra como oposicionista é mutável e o revezamento pode ser constante. Em certos casos, nos quais a força principal da classe dominante tem um lado fixo, então a ala governista tende a ser estável e somente em situações específicas abandona o governo. Também existem casos em que os setores decisivos da classe dominante por apoiar determinadas coalizões partidárias ou partidos de acordo com as suas políticas, adversários e outros elementos variáveis, o que significa que pode mudar de lado com relativa facilidade.

[10] Essa distinção, tal como já alertado, não expressam frações de classes, que são subdivisões da divisão social do trabalho, mas apenas elementos de distinção social gerados pelo capitalismo, especialmente status, renda e poder. Ou seja, o que alguns ideólogos da estratificação social colocam como sendo “classe”, aqui é apenas um elemento que revela uma distinção superficial, mas que envolve valores, posições, interesses, e por isso tem um papel explicativo no conjunto das relações sociais.

[11] Lefebvre, como sempre superficialmente e sem compreender as bases sociais e profundidade do problema, percebeu relativamente isso: “o marxismo institucional traz ainda uma resposta estereotipada para todos os problemas: otimismo incondicionado, fé no futuro” (LEFEBVRE, 1969, p. 39). O leninismo, em todas as suas variantes, nunca conseguiu ultrapassar o horizonte capitalista, o novo e o futuro é sempre uma continuidade progressista do capitalismo e nunca uma ruptura total e radical, nunca uma nova sociedade, sempre é a atual reformada.

[12] O que significa uma política de classe e expressando os interesses de classe do proletariado (articulado com interesses de outras classes desprivilegiadas, grupos sociais, etc.) sob forma autônoma e independente do aparato estatal, governos, partidos, ou seja, toda e qualquer forma de burocracia e como classe em sua totalidade e a partir dos seus interesses coletivos e fundamentais.

[13] Os setores contestadores que não estão nessas alas pertencem ao bloco progressista, seja em sua ala moderada ou extremista.

[14] Aqui estariam presentes tanto aqueles que Jensen (2015) denominou “ativistas” quanto “rebeldes”, sendo que alguns logo passam para o bloco progressista.

[15] Sem dúvida, essa não é a única determinação do processo, pois existem também os interesses dos novos militantes, pois a classe social dos novos militantes, seus interesses, a força da hegemonia dominante, entre outros aspectos, também influenciam, embora na época em que Pannekoek escreveu isso, auge da popularidade e inserção nos meios operários da social-democracia (com suas diversas tendências), esses aspectos tinham menos impacto.

[16] Esse antagonismo é de classe e se manifesta em lutas sociais, que, embora possa e muitas vezes possa repercutir em casos individuais, não se trata de ataque a indivíduos. Logo, o antagonismo de classe não é pretexto para ataques individuais despropositados ou pretexto para pessoas com desequilíbrios psíquicos, problemas pessoais ou enraivecidos atacar pessoas.

[17] A sedimentação significa, simultaneamente, preservar o sedimento conquistado (uma obra teórica, a memória de uma luta proletária importante, o avanço estratégico ou organizativo, etc.) e/ou ampliá-lo, ou seja, significa a preservação de uma conquista e/ou sua ampliação que é ponto de partida para outra conquista e ampliação ainda maior. Um dos maiores obstáculos do movimento operário e bloco revolucionário é justamente a dificuldade de sedimentação da luta, que geralmente deve recomeçar novamente, praticamente do zero, a cada nova geração.

[18] Um exemplo de análise desse tipo pode ser visto no artigo A Luta de Classes no Brasil (2013-2015) (VIANA, 2015f). http://informecritica.blogspot.com.br/2015/12/a-luta-de-classes-no-brasil-2013-2015.html


Leia mais:

A Insustentabilidade do Governo Dilma:

A Luta de Classes no Brasil:

A Corrupção na Sociedade Brasileira:

As Lições das Ruas (Análise das manifestações de 13 de março de 2016).
http://informecritica.blogspot.com/2016/03/as-licoes-das-ruas.html

Versão em Áudio:

Veja mais:

Dilma, um rock bolero: