quarta-feira, 15 de julho de 2015

A Luta Operária e os Limites do Autonomismo - Karl Jensen

A Luta Operária e os Limites do Autonomismo
Karl Jensen


A luta operária se desenvolve em três estágios diferentes e o movimento revolucionário deve agir no sentido de que ela chegue ao seu terceiro estágio, que é o da luta verdadeiramente revolucionária. Esta é a tese que desenvolveremos aqui. Os três estágios da luta operária são: a) o das lutas espontâneas; b) o das lutas autônomas; c) o das lutas autogestionárias. Faremos uma breve discussão sobre estes estágios da luta proletária e depois veremos sua relação com o movimento revolucionário.

O Desenvolvimento da Luta Operária

As lutas espontâneas ocorrem no interior do capitalismo na vida cotidiana dos trabalhadores. Quando um operário realiza vagarosamente o seu trabalho (a chamada “operação-tartaruga”), quando quebra, rouba utensílios e objetos da fábrica, quando demora no banheiro, quando “mata” serviço, etc., realiza uma ação contestatária, uma recusa das relações de trabalho, enfim, uma recusa do capital. Trata-se de uma ação que aparentemente não tem nada de crítica, contestatória, ou, como diria um leninista-vanguardista, é apenas demonstração de sua falta de consciência socialista.

O que falta nas lutas espontâneas é um discurso, é a consciência da ação. Em outras palavras, falta a manifestação da consciência da ação em um discurso. O discurso se realiza através de códigos verbais que revelam significados. Uma ação, por sua vez, também tem seu código, ou seja, também carrega em si significados. O problema é a forma que assume cada expressão de significados. A forma discursiva é verbal, realiza a reconstituição consciente do que existe através dos signos linguísticos. A forma prática é ativa, é direta, não utiliza signos embora manifeste significados. Assim, é possível realizar uma transcodificação da ação em discurso, através não dos signos mas dos significados. Se um operário não vai ao trabalho uma vez a cada dois meses, isto não é nenhuma manifestação discursiva, de signos. No entanto, a ação de não ir ao trabalho (dentro de um contexto específico, é claro, ou seja, desde que não seja por doença, etc.) possui um significado: este operário contesta o seu trabalho, está insatisfeito com ele, não se realiza nele e não quer realizá-lo, o faz apenas para ganhar dinheiro e sobreviver, é um meio que ele se submete por coação. Desta forma, a transcodificação da ação em discurso demonstra a recusa das relações de trabalho, a recusa do capital.

As lutas operárias espontâneas possuem este significado: uma recusa prática do capital. No entanto, por ser uma recusa prática, não-discursiva, ela é uma ação contestatória sem consciência revolucionária. Por isso ela ocorre no cotidiano da fábrica, no processo de trabalho, sem produzir uma ação coletiva e consciente, ou seja, uma consciência revolucionária.

O segundo estágio da luta operária é o das lutas autônomas. Aqui o discurso nasce, ainda fragmentado, ainda incompleto, ainda incipiente, tal com as lutas travadas. Aqui a ação torna-se coletiva: as reuniões, os panfletos, a greve, o piquete, entre outras formas. Aqui se recusa o capital mas não só ele, como um produto derivado dele: a burocracia. Aqui as lutas operárias já significam algo mais, significam a recusa dos representantes, dos partidos reformistas e leninistas. A consciência de classe, apesar de suas contradições, já sabe que sua ação é uma recusa e a associação operária se forma. Devido a isto, as lutas operárias autônomas significam uma prática coletiva e contestadora que assume um nível de radicalidade elevado. Daí a reação burguesa e burocrática, bem como o conflito e luta encarniçada, ou seja, a radicalização da luta de classes. A vitória burguesa ou burocrática significa a volta à normalidade capitalista. A vitória proletária significa a passagem para as lutas operárias autogestionárias. Assim, as lutas autônomas não ocorrem cotidianamente, mas em determinados momentos históricos, quando há um processo de radicalização do movimento operário. Este processo marca o nascimento de uma ação revolucionária sem consciência revolucionária. Somente quando passa para a próxima fase da luta, a das lutas autogestionárias, é que se desenvolve a consciência revolucionária.

O último estágio é o das lutas operárias autogestionárias. Aqui se revela uma luta que garante a recusa do capital e da burocracia e a afirmação da autogestão. O proletariado não só recusa o domínio do capital e da burocracia, mas também assume a direção revolucionária da fábrica e da sociedade. Aqui não só se realiza uma ação revolucionária como também se manifesta uma consciência revolucionária. Esta consciência significa não somente a compreensão do processo de exploração capitalista, da burocracia enquanto forma de dominação, mas também da necessidade de constituição de uma nova sociedade, autogerida. A recusa do capital e da burocracia vem acompanhada pela associação coletiva que passa a autogerir as relações de trabalho e o conjunto das relações sociais. O combate ao capital e ao estado é acompanhado da consciência de que eles devem ser destruídos e que em seu lugar somente a autogestão pode garantir novas relações sociais, igualitárias. Nasce a consciência de um objetivo: a revolução social, o que pressupõe uma visão da totalidade das relações sociais e da articulação do movimento operário no sentido de generalizar o processo autogestionário. É imprescindível a percepção disto, pois o comunismo, tal como colocou Marx, não surge da mesma forma que o capitalismo, através do desenvolvimento da propriedade, e sim do domínio consciente dos seres humanos sobre sua vida social, ou seja, sem consciência revolucionária não é possível uma sociedade autogerida.

Assim, a luta operária passa por três estágios: espontâneo, autônomo e autogestionário. Esta é a tendência do movimento operário. Historicamente, este é o seu desenvolvimento natural. Porém, toda tendência, numa sociedade de classes, é contrabalançada por contratendências, isto é, a luta operária segue uma linha no sentido de passar da luta espontânea, para a autônoma até chegar à autogestionária, mas a ação das outras classes sociais dificultam este desenvolvimento e por isso há retrocessos históricos, e em muitos casos a luta autogestionária ao não concretizar a revolução, marca um retorno às lutas espontâneas e o mesmo ocorre com as lutas autônomas. Marx afirmou que a consciência de classe do proletariado, sua consciência revolucionária, surge através das lutas de classes. E isto foi confirmado pela experiência do movimento operário. Mas tal experiência também deixou claro que não é só a burguesia que serve de obstáculo ao desenvolvimento da consciência revolucionária, mas também o movimento “dito” socialista – socialdemocracia e bolchevismo – também servem para bloquear tal desenvolvimento.

Estes estágios da luta operária se reproduzem em todas as classes e grupos oprimidos da sociedade capitalista. As mulheres, os jovens, os estudantes, os negros, os imigrantes, etc., também realizam lutas espontâneas, que podem se desenvolver e se tornar lutas autônomas e autogestionárias. Uma mulher que se nega a prestar “serviço sexual” ao marido ou um estudante que “mata” aula manifestam a recusa da opressão feminina e estudantil. A transcodificação desta ação em discurso pode ser feita da seguinte maneira: a ação da mulher significa o questionamento de uma relação de coerção sexual legitimada por esta sociedade e que expressa a opressão feminina e a ação do estudante significa a recusa de um processo de escolarização coercitivo expresso na sala de aula. Estas lutas espontâneas e cotidianas se transformam em lutas autônomas quando inicia-se a tomada de consciência, se esboça a ação coletiva e se rompe com as organizações burocráticas que tentam dirigir a luta, seja o das organizações estudantis ou feministas, geralmente ligadas a partidos políticos. As lutas autogestionárias ocorrem quando se passa a ter uma visão da totalidade, o que pressupõe reconhecer a unidade das lutas femininas e estudantis com a luta operária e se coloca um objetivo revolucionário ao movimento.

O Movimento Revolucionário e os Limites do “Autonomismo”

Pois bem, até aqui colocamos os estágios da luta operária. Agora devemos relacionar o desenvolvimento da luta operária com o movimento revolucionário. O problema do espontaneísmo e do “autonomismo” se encontra justamente na incompreensão da passagem das lutas espontâneas e/ou autônomas para as lutas autogestionárias. Ao fazer o elogio das lutas espontâneas, o espontaneísmo reconhece a importância e o significado destas lutas, mas não compreende que é preciso desenvolvê-las, no sentido de constituir lutas autogestionárias. Ao se fazer a apologia do espontaneísmo, os espontaneístas podem assumir duas posições: a primeira é o imobilismo, pois as lutas espontâneas bastam a si mesmas, não devemos interferir nelas. Claro que por detrás disso pode estar toda uma concepção filosófica ou economicista, tal como uma filosofia do “impulso vital” ou a tese da crise final e inevitável do capitalismo. Não interessa aqui os fundamentos desta concepção e sim suas consequências políticas. O espontaneísmo enquanto concepção e “ação” política apenas reproduz as lutas espontâneas do proletariado, o que significa ficar nos limites da sociedade capitalista e da resistência cotidiana sem perspectiva de desenvolver uma luta revolucionária. Os limites de tal concepção são por demais evidentes para termos que aprofundar em sua crítica.

Outro equívoco se encontra no “autonomismo” (não me refiro aqui às diversas correntes autonomistas que surgiram historicamente, tal como o autonomismo italiano e português, que variam muito a sua concepção, alguns até aceitando a formação de um partido, tal como ocorreu infelizmente com o  Il Manifesto, e outros conseguem cair no equívoco que aqui denominamos “autonomismo” – entre aspas, para distinguir do movimento autonomista). O “autonomismo” faz o elogio das lutas autônomas do proletariado. Trata-se, pois, do elogio de uma ação revolucionária sem consciência revolucionária. Esta posição atua no sentido de ultrapassar as lutas espontâneas e atingir a autonomia operária. Significa apoiar a luta operária contra o capital e a burocracia sem buscar desenvolver a consciência revolucionária, ou seja, transformam os limites da luta operária em virtude e os reproduzem... Tal concepção/ação política é reproduzida por alguns anarquistas, autonomistas, e outras correntes políticas que atuam no movimento operário. Assim, contribuem com a formação da classe operária como presa fácil do reformismo ou bolchevismo, pois uma ação revolucionária sem consciência revolucionária pode se tornar uma ação contrarrevolucionária... Ficar nos limites da ação revolucionária sem desenvolver a consciência revolucionária é um problema que deve ser superado pelo movimento operário e cabe ao movimento revolucionário contribuir com tal superação e não com sua perpetuação. Esta superação significa desenvolvimento e não abandono.

Até concepções filosóficas foram desenvolvidas para sustentar o “autonomismo”. Foucault é o ideólogo do “autonomismo” par excellence. Ao lado dele, aparece a figura de Deleuze. Eles revelam que o poder é “totalizador” e que a ação revolucionária não... O intelectual deve se aliar ao proletariado e este sabe tudo, ou seja, a questão é apenas de aliança... Os prisioneiros, mulheres, etc., também sabem tudo e cabe ao movimento revolucionário se aliar a eles... O engajamento é possível, mas é do tipo “espírito de rebanho”, isto é, já que o rebanho é revolucionário por si só (...) então só nos resta segui-lo... Se ele caminha para o abismo... Aqui a recusa do vanguardismo, legítima e revolucionária, se torna reformismo inconsequente. Confunde-se negação do vanguardismo com reboquismo, ou seja, aqui o movimento socialista vai à reboque das massas. Se as massas desenvolvem apenas lutas espontâneas, devemos ficar neste nível também... Se se elevam ao nível das lutas autônomas, sigamos elas... Se a classe operária quer fazer uma greve para pedir aumento salarial e melhores condições de trabalho, então vamos apoiá-la! Mas não devemos dizer para ela que isto não basta, que é preciso fazer greve de ocupação ativa e autogerir a fábrica, acabar com a propriedade e com o estado que vai aparecer em sua defesa. Se ela quer é salário maior, então vamos cobrar isto do capital... Se os desalojados querem casa, então devemos apoiá-los! Mas não devemos dizer para eles que isto não basta, que é necessário romper com a mercantilização do solo e com as relações de propriedade e com o estado que as sustenta e virá defendê-la. Se eles querem é moradia, então isto basta... Nada de consciência revolucionária...

Estes são os limites do “autonomismo”. Se o espontaneísmo não ultrapassa os limites das lutas espontâneas, o “autonomismo” não ultrapassa os limites das lutas autônomas. São um exemplo de como grupos políticos se constituem como meros reflexos das lutas operárias, sem conseguir ultrapassá-las, sem ter visão do processo histórico e se limitam a percepção do que enxergam de imediato. Transformam romanticamente as lutas operárias em modelos de ação, sem perceber que a luta operária realmente revolucionária ocorrem nos períodos revolucionários, e são as lutas autogestionárias.

Para Além do “Autonomismo”

Desta forma, resta-nos superar o “autonomismo” e defender uma concepção revolucionária, que tem como base a luta operária autogestionária. Isto é fundamental para recolocarmos a questão da relação entre os grupos políticos revolucionários e o proletariado e demais classes/grupos que são exploradas/oprimidos.
A superação do “autonomismo” tem três elementos básicos: a) reconhecimento de que sem consciência revolucionária não há movimento operário revolucionário, e, por conseguinte, é preciso efetivar uma luta cultural no interior da sociedade burguesa; b) que sem o ponto de vista proletário e da totalidade não existe teoria revolucionária, e, consequentemente, grupos revolucionários; c) sem uma articulação nacional e internacional não é possível haver revolução proletária.

O problema da consciência revolucionária já foi colocado quando tratamos da luta operária autogestionária. A questão é que o movimento operário caminha para a consciência revolucionária espontaneamente, mas a ação contrarrevolucionária da burguesia e da burocracia bloqueia tal desenvolvimento. É por isso que somente nas lutas de classes, quando há o seu processo de radicalização, que ocorre a passagem para a consciência revolucionária. Mas isto pode ocorrer antes de tal radicalização e pode facilitar tal processo. Por isso um dos papéis mais importantes dos grupos revolucionários é a luta cultural. O grande reformista Gramsci revelou a força da hegemonia burguesa e a necessidade de uma contra-hegemonia. A ação pode ser reprimida pelo capital e pelo estado mas a consciência íntima de um trabalhador não... Marx já dizia que quando a teoria se apodera das massas ela se converte em força material e isto é uma colocação revolucionária e fundamental. Não basta estar junto dos operários, dos estudantes, dos negros, dos imigrantes, das mulheres, é preciso apresentar-lhes o que a teoria nos legou, senão não há sentido para a luta revolucionária. Uma tarefa fundamental para os grupos revolucionários é lutar contra a hegemonia burguesa.

Mas aqui não se trata de retomar a tese leninista de quem “sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário”, pois não estamos tratando apenas de teoria. A posição leninista é, como em tudo mais, burocrática. Para ele, o problema está na teoria científica elaborada pela intelligentsia, o que acaba justificando o partido de vanguarda. Para nós, trata-se da consciência revolucionária, que pode se manifestar na forma de uma teoria ou em outras formas menos complexas. Neste caso, o velho e bom Marx já havia dado a resposta: os revolucionários não formam um partido à parte do proletariado, não possuem interesses próprios, não pretendem “modelar” o movimento operário.  Seu papel é fazer prevalecer os interesses comuns do proletariado, acima das divisões nacionais, e representar os interesses do movimento em seu conjunto. Os revolucionários constituem a “fração mais resoluta” do movimento revolucionário e tem sobre o proletariado a “vantagem” da compreensão dos meios e fins do movimento geral do proletariado. O objetivo dos revolucionários, ainda segundo Marx, é a superação da supremacia burguesa (abolição do capitalismo) e instauração do comunismo (diríamos hoje, autogestão).

Aqui entramos no outro ponto. A teoria revolucionária é uma forma de manifestação da consciência revolucionária do proletariado. Os proletários, devido suas condições de vida concreta, possuem dificuldades de ter acesso ao saber teórico, seja o das ciências burguesas, seja o do próprio marxismo. Alguns conseguem, apesar desta situação desfavorável, ter acesso e não só isso como também desenvolver teorias. Mas para se produzir uma teoria revolucionária é preciso partir do ponto de vista proletário, que significa aqui o ponto de vista da classe proletária em sua fase de luta revolucionária e não de indivíduos desta classe. A partir da teoria revolucionária se articula uma visão clara dos objetivos do movimento operário e da totalidade. Se para os operários sua própria condição de classe os predispõe a desenvolverem uma ação e consciência revolucionárias, o mesmo não ocorre para os indivíduos não proletários. Estes, mais do que os proletários, precisam da teoria revolucionária. Somente assim poderão ser úteis ao movimento revolucionário. Só assim poderão efetivar uma luta cultural contra a hegemonia burguesa num sentido verdadeiramente revolucionário.

Aqui entramos em outra questão. A questão da totalidade das relações sociais e da sua compreensão nos remete a mais uma crítica ao “autonomismo”, seja foucaultiano ou qualquer outro. A teoria deve partir da totalidade e realizar uma síntese totalizadora, ao contrário do que pensa os “autonomistas” com suas “teorias regionais”. Isto se reflete na estratégia revolucionária, pois ao compreender, como bem coloca o próprio Foucault, que o poder é totalizador, o contrapoder, se quiser ultrapassar o estágio das lutas autônomas, ou seja, se quiser realizar a revolução proletária, deve também ser “totalizador”. Porém, o que diferencia o poder burguês e o contrapoder proletário não é o seu caráter totalizador e sim a forma que ele assume: o poder burguês é centralizador, burocrático, repressivo. O contrapoder proletário é descentralizado, antiburocrático, libertário. Se o poder burguês possui uma hierarquia, um centro, uma camada dirigente, o contrapoder proletário se fundamenta na organização não-hierárquica, sem “centro”, sem “camada dirigente”, mas articulada, seja no que se refere aos grupos revolucionários ou ao movimento operário ou, ainda, ao conjunto dos opositores do sistema capitalista.


A recusa da organização revolucionária significa ficar nos limites das lutas espontâneas e/ou autônomas, enquanto que o movimento revolucionário, se quiser ser realmente revolucionário, deve ficar ao nível das lutas autogestionárias, que pressupõe se aglutinar em uma organização autogerida. Somente assim superaremos os limites do “autonomismo” e contribuiremos realmente para a libertação proletária, a libertação humana.

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