A Luta Operária
e os Limites do Autonomismo
Karl Jensen
A
luta operária se desenvolve em três estágios diferentes e o movimento
revolucionário deve agir no sentido de que ela chegue ao seu terceiro estágio,
que é o da luta verdadeiramente revolucionária. Esta é a tese que
desenvolveremos aqui. Os três estágios da luta operária são: a) o das lutas espontâneas; b) o das lutas autônomas; c) o das lutas autogestionárias. Faremos uma
breve discussão sobre estes estágios da luta proletária e depois veremos sua
relação com o movimento revolucionário.
O Desenvolvimento da Luta Operária
As
lutas espontâneas ocorrem no interior do capitalismo na vida cotidiana dos
trabalhadores. Quando um operário realiza vagarosamente o seu trabalho (a
chamada “operação-tartaruga”), quando quebra, rouba utensílios e objetos da
fábrica, quando demora no banheiro, quando “mata” serviço, etc., realiza uma
ação contestatária, uma recusa das relações de trabalho, enfim, uma recusa do
capital. Trata-se de uma ação que aparentemente não tem nada de crítica,
contestatória, ou, como diria um leninista-vanguardista, é apenas demonstração
de sua falta de consciência socialista.
O
que falta nas lutas espontâneas é um discurso, é a consciência da ação. Em
outras palavras, falta a manifestação da consciência da ação em um discurso. O
discurso se realiza através de códigos verbais que revelam significados. Uma
ação, por sua vez, também tem seu código, ou seja, também carrega em si
significados. O problema é a forma que assume cada expressão de significados. A
forma discursiva é verbal, realiza a reconstituição consciente do que existe
através dos signos linguísticos. A forma prática é ativa, é direta, não utiliza
signos embora manifeste significados. Assim, é possível realizar uma
transcodificação da ação em discurso, através não dos signos mas dos
significados. Se um operário não vai ao trabalho uma vez a cada dois meses,
isto não é nenhuma manifestação discursiva, de signos. No entanto, a ação de
não ir ao trabalho (dentro de um contexto específico, é claro, ou seja, desde
que não seja por doença, etc.) possui um significado: este operário contesta o
seu trabalho, está insatisfeito com ele, não se realiza nele e não quer realizá-lo,
o faz apenas para ganhar dinheiro e sobreviver, é um meio que ele se submete
por coação. Desta forma, a transcodificação da ação em discurso demonstra a
recusa das relações de trabalho, a recusa do capital.
As
lutas operárias espontâneas possuem este significado: uma recusa prática do
capital. No entanto, por ser uma recusa prática, não-discursiva, ela é uma ação
contestatória sem consciência revolucionária. Por isso ela ocorre no cotidiano
da fábrica, no processo de trabalho, sem produzir uma ação coletiva e
consciente, ou seja, uma consciência revolucionária.
O
segundo estágio da luta operária é o das lutas autônomas. Aqui o discurso
nasce, ainda fragmentado, ainda incompleto, ainda incipiente, tal com as lutas
travadas. Aqui a ação torna-se coletiva: as reuniões, os panfletos, a greve, o
piquete, entre outras formas. Aqui se recusa o capital mas não só ele, como um
produto derivado dele: a burocracia. Aqui as lutas operárias já significam algo
mais, significam a recusa dos representantes, dos partidos reformistas e
leninistas. A consciência de classe, apesar de suas contradições, já sabe que
sua ação é uma recusa e a associação operária se forma. Devido a isto, as lutas
operárias autônomas significam uma prática coletiva e contestadora que assume
um nível de radicalidade elevado. Daí a reação burguesa e burocrática, bem como
o conflito e luta encarniçada, ou seja, a radicalização da luta de classes. A
vitória burguesa ou burocrática significa a volta à normalidade capitalista. A
vitória proletária significa a passagem para as lutas operárias
autogestionárias. Assim, as lutas autônomas não ocorrem cotidianamente, mas em
determinados momentos históricos, quando há um processo de radicalização do
movimento operário. Este processo marca o nascimento de uma ação revolucionária
sem consciência revolucionária. Somente quando passa para a próxima fase da
luta, a das lutas autogestionárias, é que se desenvolve a consciência
revolucionária.
O
último estágio é o das lutas operárias autogestionárias. Aqui se revela uma
luta que garante a recusa do capital e da burocracia e a afirmação da
autogestão. O proletariado não só recusa o domínio do capital e da burocracia,
mas também assume a direção revolucionária da fábrica e da sociedade. Aqui não
só se realiza uma ação revolucionária como também se manifesta uma consciência
revolucionária. Esta consciência significa não somente a compreensão do
processo de exploração capitalista, da burocracia enquanto forma de dominação,
mas também da necessidade de constituição de uma nova sociedade, autogerida. A
recusa do capital e da burocracia vem acompanhada pela associação coletiva que
passa a autogerir as relações de trabalho e o conjunto das relações sociais. O
combate ao capital e ao estado é acompanhado da consciência de que eles devem
ser destruídos e que em seu lugar somente a autogestão pode garantir novas
relações sociais, igualitárias. Nasce a consciência de um objetivo: a revolução
social, o que pressupõe uma visão da totalidade das relações sociais e da
articulação do movimento operário no sentido de generalizar o processo
autogestionário. É imprescindível a percepção disto, pois o comunismo, tal como
colocou Marx, não surge da mesma forma que o capitalismo, através do
desenvolvimento da propriedade, e sim do domínio consciente dos seres humanos
sobre sua vida social, ou seja, sem consciência revolucionária não é possível
uma sociedade autogerida.
Assim,
a luta operária passa por três estágios: espontâneo, autônomo e
autogestionário. Esta é a tendência do movimento operário. Historicamente, este
é o seu desenvolvimento natural. Porém, toda tendência, numa sociedade de
classes, é contrabalançada por contratendências, isto é, a luta operária segue
uma linha no sentido de passar da luta espontânea, para a autônoma até chegar à
autogestionária, mas a ação das outras classes sociais dificultam este
desenvolvimento e por isso há retrocessos históricos, e em muitos casos a luta
autogestionária ao não concretizar a revolução, marca um retorno às lutas
espontâneas e o mesmo ocorre com as lutas autônomas. Marx afirmou que a
consciência de classe do proletariado, sua consciência revolucionária, surge através
das lutas de classes. E isto foi confirmado pela experiência do movimento
operário. Mas tal experiência também deixou claro que não é só a burguesia que
serve de obstáculo ao desenvolvimento da consciência revolucionária, mas também
o movimento “dito” socialista – socialdemocracia e bolchevismo – também servem
para bloquear tal desenvolvimento.
Estes
estágios da luta operária se reproduzem em todas as classes e grupos oprimidos
da sociedade capitalista. As mulheres, os jovens, os estudantes, os negros, os
imigrantes, etc., também realizam lutas espontâneas, que podem se desenvolver e
se tornar lutas autônomas e autogestionárias. Uma mulher que se nega a prestar “serviço
sexual” ao marido ou um estudante que “mata” aula manifestam a recusa da
opressão feminina e estudantil. A transcodificação desta ação em discurso pode
ser feita da seguinte maneira: a ação da mulher significa o questionamento de
uma relação de coerção sexual legitimada por esta sociedade e que expressa a
opressão feminina e a ação do estudante significa a recusa de um processo de
escolarização coercitivo expresso na sala de aula. Estas lutas espontâneas e
cotidianas se transformam em lutas autônomas quando inicia-se a tomada de
consciência, se esboça a ação coletiva e se rompe com as organizações
burocráticas que tentam dirigir a luta, seja o das organizações estudantis ou
feministas, geralmente ligadas a partidos políticos. As lutas autogestionárias
ocorrem quando se passa a ter uma visão da totalidade, o que pressupõe
reconhecer a unidade das lutas femininas e estudantis com a luta operária e se
coloca um objetivo revolucionário ao movimento.
O Movimento Revolucionário e os Limites do “Autonomismo”
Pois
bem, até aqui colocamos os estágios da luta operária. Agora devemos relacionar
o desenvolvimento da luta operária com o movimento revolucionário. O problema
do espontaneísmo e do “autonomismo” se encontra justamente na incompreensão da
passagem das lutas espontâneas e/ou autônomas para as lutas autogestionárias.
Ao fazer o elogio das lutas espontâneas, o espontaneísmo reconhece a
importância e o significado destas lutas, mas não compreende que é preciso
desenvolvê-las, no sentido de constituir lutas autogestionárias. Ao se fazer a
apologia do espontaneísmo, os espontaneístas podem assumir duas posições: a
primeira é o imobilismo, pois as lutas espontâneas bastam a si mesmas, não
devemos interferir nelas. Claro que por detrás disso pode estar toda uma
concepção filosófica ou economicista, tal como uma filosofia do “impulso vital”
ou a tese da crise final e inevitável do capitalismo. Não interessa aqui os
fundamentos desta concepção e sim suas consequências políticas. O espontaneísmo
enquanto concepção e “ação” política apenas reproduz as lutas espontâneas do
proletariado, o que significa ficar nos limites da sociedade capitalista e da
resistência cotidiana sem perspectiva de desenvolver uma luta revolucionária.
Os limites de tal concepção são por demais evidentes para termos que aprofundar
em sua crítica.
Outro equívoco se encontra no “autonomismo” (não
me refiro aqui às diversas correntes autonomistas que surgiram historicamente,
tal como o autonomismo italiano e português, que variam muito a sua concepção,
alguns até aceitando a formação de um partido, tal como ocorreu infelizmente
com o Il Manifesto, e outros conseguem cair no equívoco que aqui
denominamos “autonomismo” – entre aspas, para distinguir do movimento
autonomista). O “autonomismo” faz o elogio das lutas autônomas do proletariado.
Trata-se, pois, do elogio de uma ação revolucionária sem consciência
revolucionária. Esta posição atua no sentido de ultrapassar as lutas
espontâneas e atingir a autonomia operária. Significa apoiar a luta operária
contra o capital e a burocracia sem buscar desenvolver a consciência
revolucionária, ou seja, transformam os
limites da luta operária em virtude e os reproduzem... Tal concepção/ação
política é reproduzida por alguns anarquistas, autonomistas, e outras correntes
políticas que atuam no movimento operário. Assim, contribuem com a formação da
classe operária como presa fácil do reformismo ou bolchevismo, pois uma ação
revolucionária sem consciência revolucionária pode se tornar uma ação contrarrevolucionária...
Ficar nos limites da ação revolucionária sem desenvolver a consciência
revolucionária é um problema que deve ser superado pelo movimento operário e
cabe ao movimento revolucionário contribuir com tal superação e não com sua
perpetuação. Esta superação significa desenvolvimento e não abandono.
Até concepções filosóficas foram desenvolvidas
para sustentar o “autonomismo”. Foucault é o ideólogo do “autonomismo” par excellence. Ao lado dele, aparece a
figura de Deleuze. Eles revelam que o poder é “totalizador” e que a ação
revolucionária não... O intelectual deve se aliar ao proletariado e este sabe
tudo, ou seja, a questão é apenas de aliança... Os prisioneiros, mulheres,
etc., também sabem tudo e cabe ao movimento revolucionário se aliar a eles... O
engajamento é possível, mas é do tipo “espírito de rebanho”, isto é, já que o
rebanho é revolucionário por si só (...) então só nos resta segui-lo... Se ele
caminha para o abismo... Aqui a recusa do vanguardismo, legítima e
revolucionária, se torna reformismo inconsequente. Confunde-se negação do
vanguardismo com reboquismo, ou seja, aqui o movimento socialista vai à reboque
das massas. Se as massas desenvolvem apenas lutas espontâneas, devemos ficar
neste nível também... Se se elevam ao nível das lutas autônomas, sigamos
elas... Se a classe operária quer fazer uma greve para pedir aumento salarial e
melhores condições de trabalho, então vamos apoiá-la! Mas não devemos dizer
para ela que isto não basta, que é preciso fazer greve de ocupação ativa e autogerir
a fábrica, acabar com a propriedade e com o estado que vai aparecer em sua
defesa. Se ela quer é salário maior, então vamos cobrar isto do capital... Se
os desalojados querem casa, então devemos apoiá-los! Mas não devemos dizer para
eles que isto não basta, que é necessário romper com a mercantilização do solo
e com as relações de propriedade e com o estado que as sustenta e virá
defendê-la. Se eles querem é moradia, então isto basta... Nada de consciência
revolucionária...
Estes são os limites do “autonomismo”. Se o
espontaneísmo não ultrapassa os limites das lutas espontâneas, o “autonomismo”
não ultrapassa os limites das lutas autônomas. São um exemplo de como grupos
políticos se constituem como meros reflexos das lutas operárias, sem conseguir
ultrapassá-las, sem ter visão do processo histórico e se limitam a percepção do
que enxergam de imediato. Transformam romanticamente as lutas operárias em
modelos de ação, sem perceber que a luta operária realmente revolucionária
ocorrem nos períodos revolucionários, e são as lutas autogestionárias.
Para Além do “Autonomismo”
Desta forma, resta-nos superar o “autonomismo” e
defender uma concepção revolucionária, que tem como base a luta operária
autogestionária. Isto é fundamental para recolocarmos a questão da relação
entre os grupos políticos revolucionários e o proletariado e demais
classes/grupos que são exploradas/oprimidos.
A superação do “autonomismo” tem três elementos
básicos: a) reconhecimento de que sem
consciência revolucionária não há movimento operário revolucionário, e, por
conseguinte, é preciso efetivar uma luta cultural no interior da sociedade
burguesa; b) que sem o ponto de vista
proletário e da totalidade não existe teoria revolucionária, e,
consequentemente, grupos revolucionários; c) sem uma articulação nacional e
internacional não é possível haver revolução proletária.
O problema da consciência revolucionária já foi
colocado quando tratamos da luta operária autogestionária. A questão é que o
movimento operário caminha para a consciência revolucionária espontaneamente,
mas a ação contrarrevolucionária da burguesia e da burocracia bloqueia tal
desenvolvimento. É por isso que somente nas lutas de classes, quando há o seu
processo de radicalização, que ocorre a passagem para a consciência
revolucionária. Mas isto pode ocorrer antes de tal radicalização e pode
facilitar tal processo. Por isso um dos papéis mais importantes dos grupos
revolucionários é a luta cultural. O grande reformista Gramsci revelou a força
da hegemonia burguesa e a necessidade de uma contra-hegemonia. A ação pode ser
reprimida pelo capital e pelo estado mas a consciência íntima de um trabalhador
não... Marx já dizia que quando a teoria se apodera das massas ela se converte
em força material e isto é uma colocação revolucionária e fundamental. Não
basta estar junto dos operários, dos estudantes, dos negros, dos imigrantes,
das mulheres, é preciso apresentar-lhes o que a teoria nos legou, senão não há
sentido para a luta revolucionária. Uma tarefa fundamental para os grupos
revolucionários é lutar contra a hegemonia burguesa.
Mas aqui não se trata de retomar a tese leninista
de quem “sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário”, pois não
estamos tratando apenas de teoria. A posição leninista é, como em tudo mais,
burocrática. Para ele, o problema está na teoria científica elaborada pela intelligentsia, o que acaba justificando
o partido de vanguarda. Para nós, trata-se da consciência revolucionária, que
pode se manifestar na forma de uma teoria ou em outras formas menos complexas.
Neste caso, o velho e bom Marx já havia dado a resposta: os revolucionários não
formam um partido à parte do proletariado, não possuem interesses próprios, não
pretendem “modelar” o movimento operário.
Seu papel é fazer prevalecer os interesses comuns do proletariado, acima
das divisões nacionais, e representar os interesses do movimento em seu
conjunto. Os revolucionários constituem a “fração mais resoluta” do movimento
revolucionário e tem sobre o proletariado a “vantagem” da compreensão dos meios
e fins do movimento geral do proletariado. O objetivo dos revolucionários, ainda
segundo Marx, é a superação da supremacia burguesa (abolição do capitalismo) e
instauração do comunismo (diríamos hoje, autogestão).
Aqui entramos no outro ponto. A teoria
revolucionária é uma forma de manifestação da consciência revolucionária do
proletariado. Os proletários, devido suas condições de vida concreta, possuem
dificuldades de ter acesso ao saber teórico, seja o das ciências burguesas,
seja o do próprio marxismo. Alguns conseguem, apesar desta situação
desfavorável, ter acesso e não só isso como também desenvolver teorias. Mas
para se produzir uma teoria revolucionária é preciso partir do ponto de vista
proletário, que significa aqui o ponto de vista da classe proletária em sua
fase de luta revolucionária e não de indivíduos desta classe. A partir da
teoria revolucionária se articula uma visão clara dos objetivos do movimento
operário e da totalidade. Se para os operários sua própria condição de classe
os predispõe a desenvolverem uma ação e consciência revolucionárias, o mesmo
não ocorre para os indivíduos não proletários. Estes, mais do que os
proletários, precisam da teoria revolucionária. Somente assim poderão ser úteis
ao movimento revolucionário. Só assim poderão efetivar uma luta cultural contra
a hegemonia burguesa num sentido verdadeiramente revolucionário.
Aqui entramos em outra questão. A questão da
totalidade das relações sociais e da sua compreensão nos remete a mais uma
crítica ao “autonomismo”, seja foucaultiano ou qualquer outro. A teoria deve
partir da totalidade e realizar uma síntese totalizadora, ao contrário do que
pensa os “autonomistas” com suas “teorias regionais”. Isto se reflete na
estratégia revolucionária, pois ao compreender, como bem coloca o próprio
Foucault, que o poder é totalizador, o contrapoder, se quiser ultrapassar o
estágio das lutas autônomas, ou seja, se quiser realizar a revolução
proletária, deve também ser “totalizador”. Porém, o que diferencia o poder
burguês e o contrapoder proletário não é o seu caráter totalizador e sim a
forma que ele assume: o poder burguês é centralizador, burocrático, repressivo.
O contrapoder proletário é descentralizado, antiburocrático, libertário. Se o
poder burguês possui uma hierarquia, um centro, uma camada dirigente, o
contrapoder proletário se fundamenta na organização não-hierárquica, sem “centro”,
sem “camada dirigente”, mas articulada, seja no que se refere aos grupos
revolucionários ou ao movimento operário ou, ainda, ao conjunto dos opositores
do sistema capitalista.
A recusa da organização revolucionária significa ficar
nos limites das lutas espontâneas e/ou autônomas, enquanto que o movimento
revolucionário, se quiser ser realmente revolucionário, deve ficar ao nível das
lutas autogestionárias, que pressupõe se aglutinar em uma organização
autogerida. Somente assim superaremos os limites do “autonomismo” e
contribuiremos realmente para a libertação proletária, a libertação humana.
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