A Essência
do Marxismo
Nildo Viana
O marxismo foi adequadamente definido por Karl Korsch como “expressão
teórica do movimento revolucionário do proletariado”. Aparentemente é algo bem
simples e que em si já define o que é o marxismo em sua essência. No entanto,
dificilmente a essência se manifesta através da aparência ou das definições. No
fundo, a definição é apenas uma síntese mais geral de uma essência que é o
significado de um conceito. O aprofundamento é fundamental para transformar a
mera definição em uma concepção, em uma explicação totalizante do fenômeno.
Para concretizar isso, é necessário compreender o que é
teoria, proletariado, entre outros conceitos. Por isso é uma tarefa mais
difícil do que se pensa à primeira vista. Afirmar, como o faz Karl Korsch
(1977), que o marxismo é expressão teórica do movimento revolucionário do
proletariado traz a necessidade de entender a classe proletária. O proletariado
pode ser compreendido como uma classe social que emerge no capitalismo e que se
caracteriza por ser a classe produtora de mais-valor (MARX, 1988; VIANA, 2008).
O proletariado só existe através da relação-capital, ou seja, sua relação com a
classe capitalista. A relação-capital é produção (proletariado) e apropriação
(burguesia) do mais-valor produzido. Essas são as relações de produção
capitalistas e que formam as duas classes sociais fundamentais da sociedade
burguesa.
No entanto, se a análise se limitasse e essa constatação,
seria incompleta. Obviamente que existem outras classes sociais, embora isso
não afete diretamente nossa exposição. Contudo, em pelo menos um caso é
necessário haver esclarecimento, pois muitos confundem proletariado com assalariado,
bem como produção de mais-valor com geração de lucro. Segundo Marx, “todo o trabalhador produtivo é um
assalariado mas nem todo assalariado é um trabalhador produtivo” (MARX, 1975,
p. 111). O proletário é aquele assalariado que é trabalhador produtivo, pois
produz mais-valor. A produção de mais-valor é a produção de bens materiais nos
quais os trabalhadores produtivos (proletários) transformam a natureza e geram
mais valor ao produzir uma nova mercadoria. Nesse contexto, é fundamental
entender que apenas os trabalhadores assalariados produtivos, como os operários
fabris, agrícolas, da construção civil e das minas é que são proletários.
Esse adendo,
no entanto, ainda não resolve o problema do caráter incompleto da definição. É
preciso compreender que o marxismo não expressa teoricamente determinados
indivíduos proletários ou setores do proletariado. Ele expressa a totalidade da
classe proletária. Os comunistas “não têm interesses distintos dos interesses
do conjunto do proletariado” (MARX e ENGELS, 1988, p. 79). A frase de Marx
segundo a qual não interessa o que é o proletariado momentaneamente, nem os
indivíduos proletários, mas o que ele deve ser de acordo com o seu ser de
classe (MARX, 1979) é fundamental para entender isso. Aqui Marx coloca a
questão do “ser” e do “dever-ser”. O ser de classe do proletariado já foi
exposto anteriormente: é a classe produtora de mais-valor. Resta saber o que é
o seu “vir-a-ser”. Obviamente que, no primeiro caso, temos o proletariado
definido a partir de sua posição nas relações de produção capitalistas enquanto
classe de trabalhadores assalariados produtivos, envolvidos na relação com a
classe capitalista, enquanto classe apropriadora. Isso significa trabalho
alienado, exploração, dominação, etc. O ser-de-classe do proletariado é o de
uma classe determinada pelo capital, ou, como Marx colocou em uma de suas
obras, “classe em si” (MARX, 1985). A terminologia hegeliana sempre foi
interpretada de forma idealista, mesmo quando usada por Marx. Muitos
entenderam, equivocadamente, que classe em si quer dizer classe com consciência
não-revolucionária, transformando a problemática estabelecida por Marx num
nível muito mais profundo em apenas um problema que ocorre no nível das ideias,
das representações.
O que Marx
denominou “classe para-si”, por sua vez, resolve esta questão. A classe para-si
é o que se pode chamar “classe autodeterminada”. Se a classe em-si é aquela que
está submetida ao capital, a classe para-si é aquela que luta e rompe com o
capital, buscando sua destruição, o que significa, no fundo, sua
autodestruição, pois o proletariado só vive em relação com a burguesia, a
abolição de um termo existente numa relação gera destruição do outro. É por
isso que quando Marx trata do comunismo não usa mais a expressão “operários” e
sim “produtores”, pois o proletariado deixa de existir.
A confusão
idealista em torno do pensamento de Marx, transformando a passagem de classe
em-si a classe para-si como mera “tomada de consciência”, tem como fonte
intelectual a leitura da obra A Fenomenologia
do Espírito, de Hegel (1993). No entanto, para entender isso é necessário
ler A Ciência da Lógica (2001). Os
interesses, ou seja, a raiz social dessa confusão idealista, está em reduzir
tudo a uma questão da consciência no sentido de supervalorar as ideias “socialistas”,
“socialismo científico”, a “ciência”, que é produzida pelos intelectuais
burgueses e pequeno-burgueses do “Partido”, segundo a tese socialdemocratra de
Kautsky (1980) retomada sob forma bolchevista por Lênin (1985). O interesse é o
da classe burocrática, em sua fração partidária e mais radical, ávida pelo
poder estatal e para isso se arvorando em “vanguarda do proletariado”. A
redução do proletariado como classe para-si a uma classe com consciência
revolucionária é apenas a forma como, já que não é ela que desenvolve sua
própria consciência, deve ser dirigida por sua suposta “vanguarda”. Eis uma
primeira deformação do pensamento de Marx e os primeiros que deixam de
expressar teoricamente o proletariado para expressar ideologicamente a
burocracia.
Em A Ciência da Lógica, Hegel coloca a
questão do ser determinado e do ser autodeterminado. O ser determinado é o
imanente e o ser autodeterminado é transcendente, aquele que supera a si mesmo
ao superar o outro que faz dele o que ele é. Esse elemento é fundamental para
entender o significa de classe em-si, classe determinada (pelas relações de
produção capitalistas e tudo que é derivado disso) e classe para-si, classe
autodeterminada. A classe em-si é o proletariado em suas lutas cotidianas, seu
trabalho alienado, sua resistência individual e coletiva, suas reivindicações
salariais, sua aceitação das organizações supostamente defensoras dos seus
interesses (sindicatos, partidos). É uma classe que não ultrapassa os limites
da sociedade capitalista.
O proletariado
como classe para-si, autodeterminada, rompe com o capital e passa a autogerir
suas lutas no sentido da abolição do capitalismo. Nesse processo, ele cria sua
associação, sua auto-organização de classe, para defender seus interesses de
classe revolucionária. Marx demonstrou, em A
Ideologia Alemã (1991), que toda classe social que se torna autodeterminada
forma sua associação e autoeducação. Nesse sentido, não se trata apenas de
questão de consciência e sim de totalidade, que envolve auto-organização
(associação) e autoeducação (autoformação), forma de organização da classe
operária em sua totalidade (o “conjunto do proletariado”) e não apenas grupos
ou partes do mesmo, embora possa emergir e surgir inicialmente em determinados
lugares e setores, mas para ser classe autodeterminada é preciso atingir o
conjunto da classe.
Assim, Marx
coloca que a dominação do capital e a resistência proletária geram a
precondição para a revolução proletária: a luta de classes. Segundo ele, a
dominação capitalista constitui o proletariado como classe, criando um modo de
vida comum, interesses comuns. Ele, “é já, face ao capital, uma classe, mas
ainda não o é para si mesma. Na luta,
de que assinalamos algumas fases, esta massa se reúne, se constitui em classe
para si mesma” (Marx, 1985, p. 159). Por isso o proletariado substituirá a
sociedade civil burguesa “por uma associação
que excluirá as classes e seus antagonismos e não haverá mais poder
político propriamente dito” (Marx, 1985, p. 160). É assim que se entende a
frase de Marx segundo a qual ou o proletariado é revolucionário ou não é nada[1].
Assim, a tese
fundamental de Marx é a de que o motor da história é a luta de classes e a
constituição do comunismo é produto da luta proletária. Nesse sentido, o
marxismo só pode ser expressão teórica do proletariado como classe
autodeterminada, ou seja, como classe revolucionária. Não se trata, portanto,
de expressar o proletariado como classe determinada pelo capital, que fica nos
limites das reivindicações e reformas, lutas cotidianas e espontâneas. Sem
dúvida, esse é um momento da luta e deve ser apoiado, mas não no sentido de
reproduzir as práticas e concepções da classe nesse contexto, pois é preciso
colaborar e lutar para que elas avancem no sentido de superar a condição de
classe determinada para se tornar autodeterminada. O conceito fundamental é o
de luta de classes, o que significa que o desenvolvimento espontâneo do
proletariado apontaria para a autoemancipação, mas a luta da burguesia e suas
classes auxiliares interrompem esse processo e por isso é necessário reforçar a
luta proletária, tanto indivíduos, grupos e classes aliadas[2]. Assim, toda forma de
obreirismo e reboquismo são não-marxistas e colaboram com sua manutenção como
classe determinada pelo capital, ou seja, são concepções e práticas
conservadoras que nada acrescentam à luta proletária que ela já não faça por si
mesma e que precisa superar para se tornar classe autodeterminada.
Assim,
torna-se compreensível que o marxismo é expressão teórica do proletariado
revolucionário, ou seja, como classe autodeterminada, mesmo que, ainda não
tenha realizado tal passagem. Isto quer dizer que o marxismo expressa o
proletariado do futuro e não o do presente e ambos só se unificam quando ele se
torna autodeterminado. Desta forma, os marxistas “constituem a parte mais
resoluta” das tendências proletárias, “de todos os países”, sendo “a parte que
impulsiona sempre mais avante”, tendo sobre o restante do proletariado, no
plano da teoria, “a vantagem de uma compreensão das condições, do andamento e
dos resultados gerais do movimento proletário” (MARX e ENGELS, 1988, p. 79). O
marxismo é um pensamento extemporâneo, uma consciência antecipadora, e, por
conseguinte, não reproduz o existente e nem cai no presentismo, pois expressa teoricamente a classe que traz em
si o futuro.[3]
Nesse sentido,
o marxismo é uma teoria revolucionária e uma teoria da revolução proletária[4]. É
uma teoria revolucionária já que seu objetivo é a revolução e consiste numa
ruptura radical com todas as ideologias e formas de ilusões da sociedade
capitalista, é a antecipação da consciência do futuro no presente. E é uma
teoria da revolução proletária por analisar e compreender o processo no qual o
proletariado realiza a transformação radical do conjunto das relações sociais.
O marxismo, assim, é uma teoria do proletariado revolucionário, sua expressão
sob a forma teórica. Resta, pois, compreender o que significa ser uma expressão
teórica, porquanto já se sabe quem ele expressa.
Toda classe
social produz seus representantes teóricos e políticos (MARX, 1986). No
entanto, quando Marx usa o termos “representantes”, nada tem a ver com a
ideologia da representação política, ou ideologia da vanguarda. O que ele
coloca é que os indivíduos proletários nem sempre conseguem produzir reflexões
teóricas e ações políticas revolucionárias, sendo que alguns, superando os
obstáculos existentes, efetivam esse processo, bem como indivíduos de outras
classes, que, unindo o acesso ao mundo da cultura com o vínculo com a
perspectiva do proletariado, também realizam esse processo. Esses são aqueles
que expressam teórica e politicamente o proletariado.
No entanto, o
proletariado pode se expressar sob outras formas, tanto sob a forma utópica, doutrinária,
entre outras. O marxismo é, portanto, uma forma de expressão do proletariado, a
sua forma teórico-política. Por isso é fundamental entender o significado do
termo teoria. A teoria é uma forma de consciência que emerge num determinando
momento histórico. Ela teve antecedentes embrionários em outras formas de
consciência, mas é com a obra de Marx que ela se constitui de forma mais
completa e desenvolvida. A formação do movimento operário abriu caminho para o
desenvolvimento de uma consciência crítica e utópica e suas lutas
possibilitaram a emergência da teoria. Num primeiro momento, o movimento
operário gera o socialismo chamado de “utópico”, bem como outras manifestações
culturais, mas com as lutas proletárias mais radicalizadas é que o proletariado
acaba emergindo como força política e passa a ser percebido como a classe
revolucionária de nossa época. O marxismo é produto da luta operária[5].
A emergência
de diversas concepções num determinado momento histórico, alguns como expressão
do proletariado, como o socialismo utópico e o anarquismo, convivem com o
desenvolvimento das ideologias burguesas. As ideologias burguesas são as formas
modernas de ideologia. A ideologia é um sistema de pensamento ilusório (MARX e
ENGELS, 1991) que emerge com a divisão entre trabalho manual e intelectual,
fazendo surgir os seus produtores, os ideólogos, especialistas na produção
cultural. A ideologia é um pensamento sistemático, sendo produzida por
especialistas no trabalho intelectual, que dispõem de tempo e recursos para
desenvolver concepções sistemáticas a respeito do mundo, tal como no caso da
filosofia grega, teologia medieval e ciência moderna. As classes exploradas, na
história, não tinham condições de produzir algo semelhante e com raras
tentativas produziu algumas expressões culturais, mas somente no capitalismo
esse quadro se altera. Com o desenvolvimento tecnológico, invenção da imprensa,
bem como pelas necessidades do capitalismo de alfabetização e outras, acabam
permitindo o desenvolvimento de uma cultura proletária. No entanto, essa
geralmente fica no nível das representações cotidianas ou, no máximo, de
representações congruentes[6].
Essas formas de representações, quando produzidas pelo proletariado, são
contraditórias, unindo elementos de aceitação e negação da sociedade burguesa,
sendo que algumas acabam sendo conservadoras e outras assumem uma posição
revolucionária. No entanto, mesmo quando avançam para uma posição
revolucionária, acabam sofrendo influências de ideologias e concepções
burguesas ou de outras classes sociais. Por isso a teoria é a expressão
cultural mais desenvolvida não só por sua complexidade, mas também por sua
coerência e ser expressão da realidade. Nesse sentido, a teoria é uma
consciência correta da realidade que possui um alto grau de complexidade e
desenvolvimento, gerando um universo conceitual que expressa e explica a
realidade, e cujo objetivo é a transformação social[7], o que significa que só é
possível de se manifestar através da perspectiva do proletariado.
Essa produção
intelectual revolucionária e complexa, para emergir, necessitava de uma ampla
pesquisa e reflexão, que, partindo das contribuições existentes e da
constituição de um novo pensamento, pudesse cumprir essa tarefa de expressar
teoricamente a perspectiva do proletariado. Alguns indivíduos esboçaram esse
processo e um acabou conseguindo realizar a síntese e desenvolver tal teoria em
alto grau de desenvolvimento e complexidade. Esse mérito coube a Karl Marx. A
formação intelectual de Marx, seus estudos sobre filosofia alemã, especialmente
Hegel e Feuerbach, bem como o seu posterior estudo da economia política
inglesa, socialismo utópico, historiadores, antropólogos, entre outros,
forneceram um conjunto de elementos que ele assimilou e sintetizou no que
depois foi chamado de “marxismo”. A dialética hegeliana, expressão de uma
concepção inspirada na revolução burguesa e o humanismo feuerbachiano foram
fundamentais para o desenvolvimento do método dialético e do humanismo
marxista. O socialismo utópico, expressão inicial do proletariado, serviu para
observar o papel revolucionário dessa classe e a luta de classes, bem como a
economia política inglesa serviu de ponto de partida para uma compreensão mais
concreta do modo de produção capitalista. Estes aspectos, e outros, inclusive
envolvendo outras fontes inspiradoras, abriram caminho para que Marx, a partir
de seu projeto (derivado de seus valores, projetos, etc.) pudesse elaborar uma
verdadeira teoria da sociedade e seu processo de transformação e sua tendência
para a autoemancipação humana.
Os primeiros
textos escritos por Marx manifestavam um humanismo abstrato que,
posteriormente, se transforma num humanismo concreto, revolucionário,
proletário. É preciso deixar claro que o marxismo é um humanismo – fundamentado
numa concepção de natureza humana[8] – e
a emancipação humana era a preocupação fundamental de Marx e esse momento abriu
caminho para o momento posterior, que foi entender que tal emancipação ocorre
através da revolução proletária. A partir do breve texto Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, ele começa a
constituir o marxismo e seus elementos fundamentais. A partir daí desenvolve a
teoria da alienação e da história, e, posteriormente, do capitalismo e do
comunismo, entre diversas outras[9].
Alguns elementos foram mais desenvolvidos, outros menos, alguns apenas foram
esboçados ou citados. A brevidade da vida não deixou ele apresentar nem mesmo
sob forma mais completa uma teoria do modo de produção capitalista. Contudo,
lançou as bases para a compreensão do modo de produção capitalista, da história
da humanidade, etc. Nesse sentido, o marxismo se tornou ponto de partida para
todos que buscam uma consciência correta da realidade e não querem “reinventar”
a roda[10].
No entanto, é
fundamental aprofundar o significado do conceito de teoria. A teoria é uma
consciência correta da realidade, que pode emergir de forma mais simples e
direta, dando-lhe coerência, fundamentação (o que pressupõe ser uma totalidade
e não um saber parcial) e produzindo um universo conceitual[11] articulado e complexo. A
realidade existente é complexa e por isso sua expressão teórica também deve ser
complexa, sob pena de deformá-la ao invés de expressá-la. Essa complexidade se
manifesta através de um conjunto de teorias que forma a teoria no nível mais
totalizante, que é o marxismo. Esse conjunto de teorias se organiza através de
conceitos. A teoria articula, ou seja, reúne, relaciona, numa totalidade
coerente e complexa, um conjunto de conceitos. O conceito é expressão da
realidade (MARX, 1985)[12], ou
seja, manifesta idealmente o que existe realmente, efetivamente.
A teoria é uma
totalidade composta por um universo conceitual no qual sempre se pode
acrescentar novos conceitos. Ela é sempre incompleta e quanto mais se
desenvolve, mais ampla fica, ou seja, torna-se menos incompleta. Quanto mais se
analisa a realidade social, mais elementos e aspectos aparecem para ser
analisado, bem como uma reformulação num aspecto já analisado leva a
necessidade de reformulação em outro aspecto. É um processo infinito de
desenvolvimento da consciência teórica. Os conceitos apresentam a definição
sintética de um fenômeno social, mas ao fazê-lo remete a outros conceitos e
assim sucessivamente. O conceito de proletariado pressupõe os conceitos de
mais-valor, burguesia, capital, entre inúmeros outros e estes, por sua vez,
rementem a outros, já existentes ou que precisam ser desenvolvidos.
A teoria, como
colocamos anteriormente, é um saber interessado e nada tem a ver com a
ideologia da neutralidade, pois ela expressa interesses,
necessidades, valores, sentimentos, que são expressão do proletariado
revolucionário, manifestação contemporânea e concreta da luta pela emancipação
humana. Isso pressupõe que a produção teórica e a compreensão da teoria não são
coisas neutras e desinteressadas ou apenas “exercício intelectual” por si mesmo
ou então apenas forma de conseguir ganhar a vida como intelectual e sim
compromisso radical com a transformação total e radical das relações sociais, o
que pressupõe outros compromissos, tal como com a verdade, a liberdade, a
autogestão, etc.
A teoria
é também práxis, ou seja, atividade
(mental) teleológica e consciente. Isso significa que ela possui uma finalidade
consciente. Essa finalidade consciente é a transformação radical do conjunto
das relações sociais, a abolição do capitalismo e instituição da autogestão
social, ou seja, a emancipação humana. Logo, é sua intenção expressar a
perspectiva do proletariado, pois essa é condição de possibilidade para uma
consciência correta da realidade.
Isso se
manifesta concretamente não só pelas questões e respostas que a teoria coloca,
mas também por manifestar necessidades radicais do proletariado e por isso
precisa realizar a sua fusão com o mesmo. A assimilação da teoria em sua
totalidade pelo conjunto do proletariado é algo quase impossível, mas elementos
dela, seus aspectos essenciais e ligados às necessidades práticas do movimento
revolucionário, Esse processo só se concretiza em sua totalidade na futura
sociedade autogerida. A revolução social é um processo no qual uma força
material derruba outra força material, mas a teoria, segundo Marx (1968) também
se torna força material quando se funde com o proletariado. Essa fusão ocorre
sob várias formas, desde as mais simples até as mais complexas, variando de
acordo com o contexto (sociais e históricos), os indivíduos, os grupos, etc. O
proletariado caminha espontaneamente para a teoria nos momentos de
radicalização das lutas de classes, mas encontra pela frente os obstáculos
burgueses e burocráticos, e por isso a produção e divulgação da teoria é
necessária e parte fundamental da luta revolucionária, no sentido de buscar se
aproximar do proletariado e realizar a fusão explosiva entre práxis dos
revolucionários e práxis do proletariado, unindo ação e reflexão numa
totalidade revolucionária. Por isso, afirmar que o marxismo é expressão teórica
do proletariado revolucionário significa dizer que é, simultaneamente, sua
expressão política, que se manifesta na práxis revolucionária, que é atividade
(mental e prática) teleológica (com uma finalidade/projeto: a revolução
proletária e a autogestão social) consciente (que reflete sobre si mesmo e seus
objetivos). Essa é a essência do marxismo.
Referências
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia
do Espírito. 2 vols. 2ª edição, Petrópolis: Vozes, 1993.
HEGEL, G. W. F. Lógica.
Navarra: Folio, 2001.
KAUTSKY, K. As Três Fontes do Marxismo. São Paulo: Global, 1980.
KORSCH, K. Marxismo e Filosofia. Porto: Afrontamento, 1977.
LÊNIN, W. As Três Fontes e as Três Partes Constitutivas do Marxismo. 5ª
Edição, São Paulo: Global, 1985.
MARX, Karl e Engels, F. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 3ª Edição, São Paulo: Hucitec,
1991.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Sagrada Família. Lisboa: Presença, 1979.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 1988.
MARX, Karl. A Miséria da Filosofia. 2ª Edição, São Paulo: Global, 1985.
MARX, Karl. Crítica de la Filosofia del Derecho de Hegel. Buenos
Aires, Ediciones Nuevas, 1968.
MARX, Karl. O Capital. Vol. 1. 3ª Edição, São Paulo: Nova Cultural, 1988a.
MARX, Karl. O Dezoito Brumário e Cartas A Kugelman.
5ª Edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
MARX, Karl. Teorias da Mais-Valia.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
VIANA, Nildo. A
Consciência da História. Ensaios sobre o Materialismo Histórico-Dialético.
2ª edição, Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.
VIANA, Nildo. O
que é Marxismo? Rio de Janeiro: Elo, 2008.
[1]
Para uma análise mais pormenorizada dessa questão, além dos textos citados de
Marx (e outros não citados), pode-se consultar meus livros”Karl Marx: A Crítica Desapiedada do Existente” ou”A Teoria das Classes Sociais em Karl Marx”,
entre outros, bem como outros autores, tais como Pannekoek, Korsch, Guillerm e
Bourdet, etc.
[2]
Toda concepção que reduz a sociedade capitalista a apenas duas classes acaba
reforçando ilusões, além de mostrar incompreensão da teoria das classes de Marx
e não leitura de suas obras.
[3] O
autor que mais aprofundou a questão da consciência antecipadora e utopia
concreta, fundamentais para o marxismo, foi Ernst Bloch, o teórico da utopia.
[4] Vários
destes elementos foram retomados e desenvolvidos por alguns marxistas, como
Pannekoek, Rühle, Korsch, Mattick, entre outros. Nos limitamos a Marx e não
citamos estes outros autores marxistas por dois motivos básicos: seria
repetitivo e longo, por um lado, e o foco no nome”marxismo” remete ao fundador
dessa teoria e isso ganha importância em nossa síntese final sobre a sua
essência.
[5]
Isso é bem distinto da ideologia leninista, segundo a qual o marxismo teria se
originado do pensamento anterior, da síntese da filosofia alemã, economia
política inglesa e socialismo utópico francês (LÊNIN, 1985), concepção
nitidamente idealista e contestada por diversos autores (KORSCH, 1977; VIANA,
2008).
[6] As
representações cotidianas são aquelas produzidas na vida cotidiana e que
expressam suas características, sendo que a simplicidade é um elemento que a
distingue com mais força das demais formas de pensamento. As representações
congruentes são aquelas que ainda não atingiram um grau de complexidade elevado
(como a ciência e a filosofia), mas já possuem uma coerência e percepção de
conjunto, tal como as utopias, doutrinas, religiões, etc.
[7] A
frase de Marx ajuda a entender isso:”os filósofos se limitaram a interpretar a
realidade, o que importa é transformá-la” (MARX e ENGELS, 1991). O marxismo,
enquanto teoria revolucionária, une explicação/expressão, ou seja, consciência,
da realidade com a busca de sua transformação, sendo esta a razão de ser dela,
sua determinação fundamental, e uma vez constituída, ela é uma forma de luta
por sua concretização. A necessidade e desejo de transformação radical do
conjunto das relações sociais, cujo agente é o proletariado, gera a teoria que
expressa idealmente essa necessidade/desejo, ou os interesses do proletariado
revolucionário, através de uma produção intelectual profunda, complexa,
verdadeira, que ao existir torna-se forma de luta, ao exercer a crítica das
ideologias e da sociedade capitalista, bem como apontar as tendências de
mutação e transformação e seus obstáculos, além de desenvolver ferramentas
intelectuais (como o método dialético) e políticas (a estratégia
revolucionária) que são fundamentais para luta proletária e a constituição da
sociedade autogerida.
[8] O
pseudomarxismo, especialmente o stalinista e estruturalista, ou seja, os
seguidores de Stálin e Althusser, são”anti-humanistas”, o que significa, no
fundo, que são antimarxistas. A recusa da teoria marxista da natureza humana é
uma recusa do marxismo. A concepção marxista de natureza humana é aquela que
reconhece que para satisfazer suas necessidades básicas, os seres humanos
criaram novas necessidades, que se tornaram sua essência, e estas novas
necessidades são o trabalho e a associação, ou seja, a atividade teleológica
consciente, práxis, e a sociabilidade, o que faz do ser humano um ser práxico e
social. Somente na ideologia, ou seja, na consciência falsa sistematizada, é
que não existe natureza humana.
[9] O
marxismo é uma teoria geral que desenvolve diversas teorias específicas. Ao
elaborar uma teoria do modo de produção capitalista, surge a necessidade de
desenvolvimento teórico de questões mais específicas, tal como uma teoria dos
valores de uso no capitalismo, por exemplo. Da mesma forma, é necessária uma
teoria do Estado capitalista, etc., ou seja, assim como a realidade é infinita,
a teoria também se amplia da mesma forma, sem falar em retomada e
aprofundamento do que já foi desenvolvido, inclusive com revisão de pontos
problemáticos. Isso significa que o marxismo não abarca tudo, mas cada vez
amplia mais a sua extensão. O pseudomarxismo petrificado e estático se
contentou em repetir o que já tinha sido dito (sob forma deformada,
simplificada, coisificada) e nem sequer percebeu que nem mesmo a parte mais
desenvolvida do marxismo, a teoria do modo de produção capitalista, estava
completa e que seria necessário ampliar e resolver inúmeras questões não
abordadas por Marx. Desta forma, é preciso compreender que o marxismo é uma
forma de consciência e, a partir do momento que um indivíduo o compreende, deve
desenvolvê-lo. Esse é caso da consciência individual, pois quanto mais um
indivíduo ganha experiência e realiza reflexões, mais desenvolve sua
consciência e amplia sua percepção da realidade.
[10]
Curiosamente, alguns”marxistas” ou ex-”marxistas” tentam criticar Marx para
substituí-lo, não percebendo que essa ambição individual oriunda da
sociabilidade capitalista é nada mais do que uma forma de deformação da
realidade através de motivações individuais fundadas nos valores e mentalidade
dominantes.
[11] A
expressão”universo conceitual” visa deixar claro que é algo infinito, pois
sendo a realidade infinita, o desenvolvimento da teoria significa ampliar cada
vez mais elementos dela que são expressos sob a forma de conceitos, o que
significa que os conceitos do marxismo sempre se ampliam.
[12]
Marx usa”categorias” como sinônimos de”conceitos”. Nós distinguimos categorias
e conceitos (VIANA, 2007), sendo que no primeiro caso temos ferramentas
intelectuais para analisar a realidade e no segundo expressões da mesma. Assim,
o termo”relação” é uma categoria, uma ferramenta intelectual para pensarmos a
realidade, enquanto que”relações de produção capitalistas” é conceito,
expressando relações sociais concretas e existentes na realidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário