Marx segundo Korsch
Resenha do livro “Karl Marx”, de Karl Korsch*
Paul Mattick
Com marcante distinção a respeito de muitas outras
interpretações de Marx, este livro se concentra nos fundamentos essenciais da
teoria e prática marxistas. O autor reafirma “os princípios e conteúdos mais
importantes da ciência social de Marx à luz dos acontecimentos históricos
recentes e das novas necessidades teóricas que têm surgido pelo impacto destes
acontecimentos”. O livro não foi publicado para agradar ao curioso, nem
corresponde ao interesse de nenhum grupo particular. Apesar de sua densidade e
objetividade, é uma ferramenta teórica útil para as aspirações da classe
proletária; ao resenhá-lo, não podemos fazer nada melhor que indicar, embora
inadequadamente, sua riqueza e seu valor.
O livro se divide em três partes: Sociedade, Economia
Política e História. O marxismo é declarado “a genuína ciência social do nosso
tempo” e sua superioridade em relação à ciência pseudossocial da burguesia é
demonstrada ao longo do livro.
Captar o princípio da especificidade histórica em Marx é da
maior importância para a compreensão do fenômeno social. Marx usa os conceitos
econômicos, sociais e ideológicos “apenas quando necessário para seu tema
principal, ou seja, o caráter específico assumido por eles na moderna sociedade
burguesa”. As chamadas “ideias gerais” sempre tem que ter um elemento histórico
específico. Por exemplo, o falso conceito idealista da evolução tal como é
aplicado pelos teóricos sociais burgueses
está fechado
por ambos os lados, e em todas as formas passadas da sociedade apenas se
redescobre a si mesmo. O princípio marxista do desenvolvimento é, inversamente,
aberto por ambos os lados. Marx define a nova sociedade comunista que surge da
revolução proletária não apenas como uma forma mais desenvolvida do que a
sociedade burguesa, mas como um novo tipo que não pode ser explicado por meio
de nenhuma das categorias burguesas.
É necessário, especialmente hoje, reafirmar esta posição
marxista, deixando claro, ao considerar a literatura recente sobre socialismo,
que simplesmente imagina a sociedade socialista como uma forma modificada de
capitalismo e, usando diferentes nomes, transfere todas as categorias
capitalistas à “nova” sociedade.
O princípio da especificidade histórica, tal como utilizado
por Marx, não exclui um grau necessário de generalização. Contudo, leva a um
novo tipo de generalização. Com Marx,
o “geral” do conceito já não se coloca confrontado à realidade concreta
como em outro reino, senão com todo o geral, incluso em sua forma conceitual,
permanecendo necessariamente como um aspecto específico ou uma parte
mentalmente fragmentada do concreto histórico da existente sociedade burguesa.
A atual tagarelice popular sobre a “metafísica
do materialismo dialético”, embora não seja tratado por Korsch, é não obstante
contestado por ele quando assinala que
se Marx, de fato, partiu de uma inversão crítica e
revolucionária dos princípios inerentes ao método de Hegel, certamente
continuou desenvolvendo, de uma maneira estritamente empírica, os métodos
específicos de sua própria crítica e investigação materialistas.
O entusiasmo dos últimos dos
críticos do “senso comum” é o que tem menos justificação, enquanto que a teoria
marxista,
trata todas as ideias como estando conectadas com uma época histórica
definida e com uma forma de sociedade específica que pertence a tal época, se
reconhece a si mesma como nada mais do que um produto histórico, como qualquer
outra teoria que pertence a uma fase definida do desenvolvimento social e a uma
classe social definida.
A segunda parte do livro aponta de início que “a Economia
Política, que trata da fundamentação material do Estado burguês existente, é,
para o proletariado, o primeiro e mais destacado inimigo”. O autor descreve a
história do pensamento econômico burguês de modo bastante conciso e mostra
porque qualquer “desenvolvimento genuíno da Economia Política foi excluído pelo
desenvolvimento histórico real da sociedade burguesa”. A crítica de Marx à
Economia Política não era, como se assume frequentemente, um desenvolvimento
superior da ciência econômica burguesa, mas a teoria de uma revolução iminente.
As diferenças entre os conceitos econômicos clássicos e os marxistas são
demonstradas da maneira bastante esclarecedora e mostra que os avanços
marxistas
da teoria econômica clássica são importantes, não por seu puro avanço
formal sobre o conceito clássico, mas por sua transferência clara e decidida do
pensamento econômico do campo da troca de mercadorias e das concepções legais e
morais do bem e do mal que dela se originam, ao campo da produção material
tomado em sua plena significação.
Pensamos que os melhores capítulos do livro são aqueles
dedicados ao fetichismo das mercadorias e
a Lei do valor. O autor mostra novamente que: “as ideias e princípios mais
gerais da Economia Política são meros fetiches que mascaram as relações sociais
efetivas, prevalecentes entre os indivíduos e as classes dentro de uma época
histórica definida da formação socioeconômica”, e indica ademais que a
exposição teórica do caráter fetichista das mercadorias é “não somente o núcleo
da crítica da economia política marxista, mas ao mesmo tempo a quintessência de
sua teoria econômica do capital e a definição mais explícita e mais exata do
ponto de partida teórico e histórico de toda a ciência materialista da
sociedade”. Esses capítulos estão condensados com tal destreza, sem com isso
perder clareza, que fazem inútil qualquer intenção de reiteração. Os
pensamentos não podem expressar-se em uma linguagem mais precisa e efetiva e
unicamente podemos nos limitar a dizer que o autor vê a tarefa do proletariado
revolucionário como “a destruição final do fetichismo mercantil capitalista
mediante uma organização social direta do trabalho”. A importância da atual
organização social do trabalho, que é ocultada sob as relações de valor
manifestas nas mercadorias, é demonstrada fazendo referência às atuais
intenções ilusórias de “planificação” capitalista, que só pode perturbar ainda
mais a “ordem” que é peculiar ao capitalismo e foi produzido pelas necessidades
cegas da fetichista lei do valor.
Outro capítulo expõe as más interpretações comuns da
doutrina marxista do valor e do mais-valor, e é muito oportuna devido aos novos
ataques lançados pelo “liberalismo” em torno ao caráter “acientífico” da teoria
econômica marxista. Pois se argumenta, uma e outra vez, que a teoria do valor
de Marx deve estar equivocada dado que aborda o problema exclusivamente do lado
da oferta e é, por conseguinte, incapaz de abordar o problema dos preços reais.
Contudo, Korsch afirma que
Nunca foi a intenção de Marx derivar da ideia geral do valor, tal como
foi exposta no primeiro volume de O
Capital, por meio de determinações cada vez mais estreitas até uma
determinação direta do preço das mercadorias. A importância particular da lei
do valor dentro da teoria de Marx não tem nada a ver com uma fixação direta dos
preços das mercadorias por seu valor.
As diversas exposições dos
economistas burgueses, tentando provar discrepâncias entre a lei do valor e das
constelações efetivas dos preços, discrepâncias devidas, segundo creem, à “unilateralidade”
do conceito de valor de Marx, estão inteiramente fora do lugar. E é bastante
divertido notar que a aplicação de Marx da lei do valor à força de trabalho é
rechaçada com o argumento da flexibilidade dos salários, um argumento que só
demonstra que esses economistas burgueses desconhecem a posição de seu
oponente. De acordo com Marx: “não há nenhuma relação econômica ou
racionalmente determinável entre o valor e as novas mercadorias produzidas pelo
uso da capacidade viva do trabalho na fábrica e os preços pagos por este
trabalho a quem a vendem”.
A última parte do livro trata da concepção
materialista da história. Embora tenha uma origem filosófica, Korsch aponta que
a ciência materialista de Marx, “sendo uma investigação estritamente empírica
de formas históricas e definidas de sociedade, não necessita um suporte
filosófico”. Descrevendo o desenvolvimento científico de Marx, mostra que “já
em 1843, se tornara claro para Marx que a Economia Política era a chave de toda
a ciência social”. No lugar do eterno desenvolvimento da “Ideia”, Marx colocou
o desenvolvimento histórico real da sociedade sobre a base do desenvolvimento
do modo de produção material. Em um capítulo que trata da relação entre Natureza e Sociedade, Korsch mostra que
como com todas as demais inovações incorporadas na nova teoria
materialista, a extensão metódica por parte de Marx, da sociedade a expensas da
natureza, é demonstrada principalmente sobre o campo da ciência econômica.
Depois de esclarecer vários conceitos marxistas, tais como a
relação entre forças produtivas e relações de produção e base e superestrutura
da sociedade, Korsch explica o que Marx queria dizer ao afirmar que “o
verdadeiro limite histórico da produção capitalista é o próprio capital”, e que
somente a revolução proletária, ao alterar as relações de produção, pode
assegurar o desenvolvimento progressivo ulterior das forças sociais da
produção.
Mas embora estejamos de acordo em grande medida com esta
interpretação de Marx, não podemos nos abster de comentar que a sua grande
clareza e coerência revolucionária ao tratar do pensamento de Marx fica
atenuada no momento em que aborda os acontecimentos revolucionários mais
recentes e suas características. Por exemplo, o deslocamento da ênfase entre as
formulações mais iniciais e as mais tardias dos princípios materialistas por
parte de Marx, do fator subjetivo da luta de classes revolucionária a seu
desenvolvimento objetivo subjacente está, na interpretação de Korsch, causado
porque os desenvolvimentos efetivos impõem uma mudança de atitude. “De maneira
similar”, diz, “o marxista revolucionário Lênin confrontou-se com as tendências
revolucionárias ativistas dos comunistas de esquerda de 1920 que, em uma
situação objetivamente alterada, aderiram às palavras de ordem da situação
revolucionária direta provocada pela Grande Guerra”.
Esta defesa tardia do panfleto oportunista e bastante pueril
de Lênin, O Esquerdismo, Doença Infantil
do Comunismo, que foi escrito para assegurar o controle russo sobre o
movimento operário internacional para o interesse específico da Rússia e seu
Partido Bolchevique, não pode mudar o fato de que a “mudança de lado” de Lênin
não foi o resultado de uma consideração sóbria de uma situação alterada, pois
não significou nenhuma mudança real. Este panfleto de Lênin mantinha a posição
que sempre teve diante da oposição revolucionária de setores do proletariado da
Europa ocidental. Esta posição era a mesma que possuía também durante o tempo
que, segundo Korsch, era objetivamente revolucionário. Era a posição da
socialdemocracia dos tempos de pré-guerra, que Lênin nunca abandonou
mentalmente, mas só organizativamente. Está entrelaçada com a posição do
revolucionário burguês russo e em estrita oposição a todos os princípios
revolucionários específicos da classe trabalhadora antes, durante e depois da
Grande Guerra. Estava em estrita oposição, também, aos princípios marxistas,
esquecidos tanto pelos socialistas como pelos bolcheviques e que, reafirmados
aqui, fazem desta obra, goste ou não seu autor, uma arma contra o Lênin “marxista”.
* KORSCH, Karl. Karl Marx. Londres, London School Of Economics, 1938. Tradução de
Jaciara Reis Veiga.
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